Monday, April 11, 2016

O "modelo sueco" anti-prostituição, o "tráfico humano" e as manipulações semânticas

Há dias, o Expresso noticiava a aprovação da nova lei francesa sobre a prostituição:

Mais de dois anos depois de ter sido apresentada, a legislação foi aprovada por uma maioria simples dos deputados da câmara baixa do Parlamento francês para combater redes de tráfico. País segue exemplo da Suécia, um dos primeiros do mundo a penalizar não as prostitutas mas os que pagam pelos seus serviços. (...)
A lei foi aprovada na câmara baixa com 64 votos a favor, 12 contra e 11 abstenções. Sublinha o "Le Monde" que esta legislação estava a ser debatida há mais de dois anos por causa de diferenças de opinião entre a câmara baixa e a câmara alta do Parlamento francês. Durante o debate final, cerca de 60 prostitutas manifestaram-se frente ao Parlamento, em Paris, com cartazes onde se lia "Não me libertem, eu tomo conta de mim própria", noticiou a AFP.

Ao longo destes dois anos de discussão, membros do sindicato de trabalhadores do sexo, o Strass, disseram que, a ser aprovada, a legislação iria ter um impacto negativo nas condições de vida de entre 30 e 40 mil prostitutas do país. Os que apoiam a medida dizem que é o melhor instrumento para combater as redes de tráfico humano que operam dentro e fora de França.
Para começar é curiosa essa maneira de descrever a lei sueca - poderiam simplesmente dizer que penalizam os clientes, mas em vez disso dizem que penalizam os clientes e não as prostitutas. Imagine que alguém descrevia o hábito asiático de comer cães nos seguintes termos "no extremo-oriente come-se cães e não pessoas"; tecnicamente era verdade, mas não me parece que essa formulação, implicando quase uma alternativa entre comer cães ou pessoas, fizesse grande sentido. Da mesma maneira, dizer-se que na Suécia ou em França pune-se os clientes e não as prostitutas (em vez de simplesmente se dizer que se pune os clientes) parece-me uma forma de criar uma oposição imaginária entre as duas políticas ("És contra a penalização dos clientes? Quer dizer que achas que quem deveria ser punido eram as prostitutas? Monstro!") que não faz qualquer sentido (afinal, em grande parte dos países civilizados, incluindo Portugal, nem uns nem outros são punidos).

Já agora, a tal conversa da relação entre a prostituição e as "redes de tráfico humano" também merece ser escrutinada: "tráfico humano" é uma expressão muito ambígua; na prática, é pouco mais do que uma forma particularmente assustadora de dizer "imigração ilegal"" (poderíamos chamar-lhe um "disfemismo" - o oposto de um "eufemismo"). Atendendo a que, nos países ricos, os trabalhos mal pagos, penosos e/ou socialmente mal-visto tendem a ser feitos desproporcionalmente por imigrantes de países pobres (logo, grande parte das prostitutas serão imigrantes); atendendo também que não deve ser muito fácil (tanto por razões legais - quer nos países de origem como de destino - quer por tabus morais) uma potencial imigrante conseguir um visto de trabalho para vir exercer a profissão de prostituta, é natural que muitas dessas imigrantes sejam ilegais (logo, "vítimas de tráfico"); ainda por cima, mesmo nos casos de imigração legal (p.ex., entre países do espaço Schengen) há a tendência para falar de "tráfico humano" quando a atividade de destino é a prostituição (veja-se as noticias que de vez em quando surgem sobre a contratação de mulheres na Roménia para trabalhar como prostitutas na Alemanha, em que tal é invariavelmente associado a "redes de tráfico humano"), o que torna muitas prostitutas "vítimas de tráfico" quase por definição.

[Um post que talvez escreve uma dia: analisar políticas como punir os clientes mas não as prostitutas, ou punir os médicos de abortos mas não as mulheres que abortam, tomando em consideração o conceito de incidência económica do imposto]

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