Monday, December 28, 2015

Um argumento a evitar na defesa do Rendimento Básico Incondicional

Com sabem, eu simpatizo com a ideia de um rendimento básico incondicional (RBI); no entanto, cada vez mais tenho visto ser usado em defesa do RBI um argumento que não acho muito forte: a de que o RBI seria a melhor solução para o problema da falta de empregos causada pela automatização (ver, p.ex., este post do João Vasco Gama).

Já à partida, noto que outro argumento que costuma ser usado para defender o RBI é que desincentiva menos o trabalho que outros mecanismos de proteção social; logo o facto de umas pessoas serem a favor do RBI por estimular mais as pessoas a trabalhar (comparando com sistemas alternativos) e outras acharem que é a melhor solução para o problema de não haver empregos disponíveis leva-me a pensar que alguém deve estar enganado aqui (as duas posição não são propriamente contraditórias, mas penso que há uma clara tensão entre elas).

E qual é a meu principal problema com o argumento "destruição dos empregos por causa da automatização"? É que, se formos, não ler os artigos de opinião sobre o futuro da economia e/ou da tecnologia (onde a conversa da destruição de empregos por via da nova revolução tecnológica tem vindo a ganhar popularidade), mas ver as estatísticas, essa revolução-tecnológica-que-vai-destruir-montes-de-empregos-por-causa-da-automatização, simplesmente... não existe!

A melhor maneira de medir a automatização talvez seja pela evolução da produtividade do trabalho - a produtividade é calculada dividindo a produção total pelo número de trabalhadores (ou pelo número de horas trabalhadas - mas as duas metodologias não costumam dar resultados muito diferentes), logo quanto maior a automatização, maior a produtividade.

Um gráfico do Bureau of Labor Statistics norte-americano com a evolução da produtividade nos EUA nas últimas décadas:



Atualmente o crescimento da produtividade até é substancialmente menor ao que foi no período de 47-73 (que até foi talvez a época em que o mundo ocidental esteve mais próximo do pleno emprego). Logo, se a automatização maciça que as estatísticas indicam que terá ocorrido nos anos 50/60 não provocou nenhum desemprego por aí além, não há de ser a automatização insignificante (mesmo o período recente de maior crescimento da produtividade, de 2000 a 2007, não chegou ao ritmo de 47/73) que está a ocorrer hoje em dia que o vai provocar. É verdade que a crise económica pode ter contribuído para esse baixo crescimento da produtividade (porque muitas vezes as empresas, mesmo com menos encomendas, não despedem trabalhadores, ficando à espera que as coisas melhores, o que diminui a produção por trabalhador), mas duvido que seja só por causa disso.

[Já agora, uma nota sobre o conceito de "produtividade do trabalho" - ou, mais exatamente, de "produtividade aparente do trabalho": como disse, trata-se apenas de um rácio matemático, sem nenhuma ligação necessário com se trabalhar "bem" ou "mal", "muito" ou "pouco"; digo isto porque por vezes parece-me que este aspeto se perde nalgumas discussões, nomeadamente no clássico "os trabalhadores portugueses têm baixa produtividade; mas quando vão para fora toda a gente diz que são muito bons", como se a produtividade do trabalho fosse, não o tal rácio matemático, mas uma característica do trabalhador]

Claro que se poderá dizer que, mesmo com uma taxa de crescimento menor, a produtividade hoje em dia é maior do que era há 40 anos (e ainda maior do que há 300 anos...), logo temos a tal automatização, mas parece-me que para isto é mais relevante o nível de variação do que propriamente o valor absoluto (senão em cada ano teríamos uma revolução tecnológica sem precedentes, com um nível de produtividade nunca visto até então na história).

E, se olharmos em volta, nomeadamente para o trabalho mais "físico" e/ou menos qualificado, vemos alguma automatização por aí além comparando com, digamos, os anos 90? Olhe-se para uma loja, um restaurante, um estaleiro de construção civil, uma exploração agrícola, um hotel, uma traineira de pesca, etc; será que usam significativamente mais máquinas e menos pessoas do que há 20 anos? Pelo que vejo (e admito que é mais fácil "ver" nuns sectores do que noutros), não me parece - por exemplo, o barbeiro onde eu vou desde os 6 anos cortar o cabelo parece-me igualzinho. Ok, no caso das lojas, admito que haja uma automatização "invisível" - uma loja "física" (seja de que produto for) tem mais ou menos o mesmo pessoal e tecnologia que uma loja de há 20 anos, mas agora há também as lojas virtuais, que suponho tenham muito menos pessoal (mas até que ponto o menos pessoal no atendimento ao cliente não é compensado por mais pessoal a entregar encomendas é discutível). De qualquer maneira, parece-me que nesses sectores as grandes inovações tecnológicas poupadoras de trabalho ocorreram nos anos 50, 60, 70, um pouco nos 80 (sobretudo em Portugal, em que demoramos um bocado a adotar tecnologias que já estavam generalizadas noutras países), e que hoje em dia o que há é inovações aqui e ali, mas nenhuma revolução tecnológica digna desse nome (e muitas das inovações poupadoras de trabalho parecem-me ser, não via automatização, mas simplesmente pôr os clientes a fazer o trabalho que antes era feito pelos empregados).

Veja-se, aliás, a popularidade que, na banda desenhada e/ou na ficção cientifica, o robot antropomórfico (ou pelo menos com braços e algo similar a pernas) tinha nos anos 50-60-70, desde o "Lampadinha" (um personagem criado em 1956) até aos robots da Guerra da Estrelas (1977) ou os cylons da Gallactica (1978), enquanto hoje em dia parece-me que quase só aparece em obras que são continuações de obras anteriores (como as séries Guerra das Estrelas/Star Wars ou Exterminador Implacável) - provavelmente o sinal de uma época em que a expetativa era de que o trabalho físico fosse ser quase todo feito por máquinas.

Nos dias de hoje, o grande progresso tecnológico parece-me sobretudo centrado num sector especifico - o trabalho mental não-criativo, como empregos "de escritório" e afins, que é o género de trabalho que é facilmente feito por computadores (nem o trabalho físico nem o trabalho criativo parecem-me muito adequados a serem feitos por computadores) - e, voltando ao tema da cultura popular, parece-me que nas últimas décadas o computador tem ganhado grande terrenos ao robot como protagonista de filmes e livros (um indicio que ultimamente a automatização tem sido sobretudo ao nível do trabalho mental e vez do físico?). Mas talvez seja por isso que entre as classes intelectuais é popular a ideia que está a haver uma grande destruição de empregos por causa da automatização: a automatização até não é muita no conjunto da economia, mas está a ocorrer ao pé deles (não tanto nos seus trabalhos, mas nos trabalhos de pessoas muitas vezes nos mesmos edifícios).

Leituras recomendadas, que podem parecer não ter nada a ver com o assunto, mas acho que até têm:
America, the Boastful, por Paul Krugman (1998)
- The Skill Content of Recent Technological Change: An Empirical Exploration [PDF], por David H. Autor, Frank Levy e Richard J. Murnane

[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]