Friday, April 17, 2015

Os economistas e Robinson Crusoé

Alexandre Abreu faz aqui uma crítica ao que considera ser os modelos simplístas na economia, nomeadamente ao chamado "individualismo metodológico".

Para começar, acho que logo o título do artigo ("Esqueçam o Robinson Crusoé") é algo infeliz, porque pode, a quem não esteja por dentro do assunto, dar uma ideia errada do que é o "individualismo metodológico". Basicamente, o "individualismo metodológico" é uma escola de pensamento que vê e pretende explicar a ordem social como o resultado da agregação e interação das decisões individuais das pessoas que integram essa sociedade. Mas com esse título (que remete para um individuo isolado numa ilha), quem não saiba à partida o que é o individualismo metodológico pode ficar com a ideia que o individualismo metodológico se refere a considerar os individuos como agindo isoladamente e sem interação uns com os outros (quando, pelo contrário, se refere exatamente a estudar as interações entre os individuos).

Diga-se, aliás, que nem me parece que na economia se costume estudar muito verdadeiros "modelos Robinson Crusoé", até porque grande parte das teorias económicas (nomeadamente aquelas que parecem mais contra-intuitivas - como a vantagem comparativa ou o motivo dos diamantes serem mais caros que a água - e por isso funcionam quase como um marca distintiva ou mesmo como "ritual de iniciação" dos economistas) só têm razão de ser num mundo com trocas e divisão do trabalho (numa verdadeira economia Robinson Crusoé, de produtores auto-suficientes, os problemas económicos seriam apenas problemas de engenharia de produção, e nem haveria espaço para a existência da Economia como disciplina autónoma).

Após este ponto (que talvez tenha mais a ver com a "estética" - o título - do artigo, do que com o seu conteúdo), vamos a aspetos mais substanciais:

"Da década de 1970 em diante, porém, o individualismo metodológico estendeu o seu predomínio à macroeconomia, impondo, como requisito para que as explicações macreconómicas (neoclássicas ou neo-keynesianas, tanto faz) sejam consideradas respeitáveis, que estas assentem em microfundações - preferências e acções de agentes representativos."
Bem, à partida não há nada que obrigue a que as "microfundações" se baseiem em "agentes representativos" (isto é, estudar o comportamento de um agente hipotético e depois assumir que toda a gente - ou todos os elementos de uma dada categoria, como trabalhadores ou empresários - se comportará assim); pode-se perfeitamente fazer micro-fundações assumindo diversos agentes, cada qual com preferências, riqueza ou capacidades distintas - o recurso ao "agente representativo" é apenas porque dá menos trabalho.
Esta evolução da macroeconomia é muitas vezes apresentada como um passo no sentido do rigor, da consistência lógica e da cientificidade. Na realidade, porém, constitui um retrocesso. E o motivo é relativamente fácil de explicar. O problema não reside no recurso a modelos: toda a ciência recorre a representações simplificadas da realidade, todo o pensamento científico abstrai de circunstâncias particulares na formulação de explicações gerais. O problema surge, porém, quando essas simplificação e abstracção implicam descartar aspectos essenciais do fenómeno que se pretende explicar. E é isso mesmo que sucede quando se salta para a escala individual em busca de explicações para fenómenos intrinsecamente sociais: descarta-se factores e propriedades que se manifestam à escala social sem que sejam (facilmente) detectáveis ou teorizáveis à escala dos indivíduos.
Exemplos? Quais poderão ser exatamente esses fatores que se manifestam à escala social mas não são facilmente detectáveis ou teorizáveis à escala dos indivíduos?
Nas aldeias imaginárias que contam com apenas um padeiro e um merceeiro perfeitamente racionais e informados, o aumento da massa monetária apenas aumenta o preço dos produtos e não o volume da produção
Em primeiro lugar, numa aldeia imaginária com apenas um padeiro e um merceeiro o que teríamos seria um monopólio bilateral (em que qualquer decisão implicaria um vasto raciocínio "o que deverei fazer assumindo que ele assume que eu assumo que ele assume que eu assumo que ele vai fazer isto"), que é algo que a teoria económica neo-clássica foge como o diabo da cruz (já que é difícil de modelizar); se a teoria económica mais mainstream tem um defeito até é exatamente o oposto - ter como ponto de partida o modelo da concorrência perfeita, que assume uma quantidade infinita de padeiros e de merceeiros, quando no mundo real o que muitas vezes acontece é exatamente a situação ser muito próxima de só haver um vendedor e um comprador (p.ex., só há para aí uns 2 postos de trabalho - e sujeitos ao mesmo empregador - no mundo com as características - incluindo funções, localização e chefe direto - do meu emprego atual; e também já me disseram que não há muitas pessoas como eu - seja lá o que isso queira dizer - o que significa que a minha situação laboral tem semelhanças com um monopólio bilateral, em que aquele produto específico só tem um vendedor e um comprador).

Em segundo, e deixando de lado as complexidades associadas a modelizar um monopólio bilateral, mesmo com "um padeiro e um merceeiro perfeitamente racionais e informados" o aumento da massa monetário pode aumentar o volume da produção e não apenas o preço dos produtos - basta que mudar o preço tenha custos (imprimir as etiquetas, jogar as velhas fora, etc.) para haver alguma rigidez de preços, e portanto variações na massa monetária afetarem a produção (uma questão mais complexa é se nesse modelo também é admissível assumir-se que pode haver rigidez de preços por o padeiro e o merceeiro não terem paciência para todos os dias - ou todos os minutos - estarem a pensar que preço praticar; se por "perfeitamente racionais e informados" assumirmos uma situação em que o custo de pensar é zero, não, já que aí, por definição, pensar não dá trabalho nenhum; mas se por "perfeitamente racionais e informados" assumirmos apenas uma situação em que o indivíduo não se engana quando pensa, mas em que mesmo assim pensar dá trabalho e portanto o indivíduo pode - racionalmente! - decidir que só durante um dia por mês é que vai pensar nos preços que pratica, aí já podemos ter rigidez de preços por essa via).

Já agora, há dias lí um texto de Scott Sumner (um economista liberal, que difere da linha dominante entre os seus "camaradas" num ponto - é a favor de uma expansão monetária para se sair da crise) que pensei em re-postar aqui, e que acho que é relevante para esta discussão:

[I]t's very rare for workers at individual firms to be able to save their jobs with wage cuts.

Consider a sudden 8% decline in NGDP growth per capita, relative to trend. One example occurred between mid-2008 and mid-2009, when the growth rate plunged from the normal 4% to negative 4%. Now suppose you are a group of nurses. Would you be anxious to accept an 8% wage cut relative to your previous expectation? I don't see why, nurses aren't likely to lose jobs in a recession, nor are lots of other people, such as tenured teachers. But if they don't accept wage cuts then just imagine how big the wage cuts must be in other sectors to reduce the aggregate nominal wage rate by 8% below trend. Even worse, if you are a worker in a windshield wiper plant, good luck saving your job with wage cuts when the automakers you supply stop making cars.

The macroeconomy is a very complex system. Macro problems cannot be understood by thinking in terms of workers at a "representative firm," because very few workers are at such firms. This means there are huge externalities to wage (and price) flexibility, which makes it even less likely that society will reach an equilibrium with sufficient wage flexibility.

À primeira vista, isto poderá parecer como um argumento contra as "microfundações", já que assenta na ideia de que a possibilidade de um trabalhador conseguir salvar o seu emprego depende, não apenas das reduções salariais que ele esteja disposto a aceitar, mas também da evolução geral dos preços e salários no conjunto da economia; mas se pensarmos um pouco no assunto, concluímos que é exatamente porque as decisões sobre preços e salários são tomadas individualmente que o nível de preços se demora a ajustar (por regra geral, creio que a ideia de que a sociedade por vezes pode ficar "presa" num mau equilibrio até é muito mais fácil de se compreender se se fizer uma análise baseada no individualismo metodológico e/ou nas "microfundações" - é relativamente simples imaginar ou descobrir mecanismos pelos quais cada individuo tentando maximizar o seu bem-estar acaba por reduzir o bem-estar de todos, como no exemplo clássico é o "dilema do prisioneiro").

Continuando a pegar no exemplo da expansão monetária gerar aumentos de preços ou expansão da produção, arriscaria-me a ir ainda mais longe - que se alguém não tem uma posição solidamente "microfundamentada" são exatamente os que acham que a expansão monetária só causa aumentos de preços: nesta altura do campeonato, os que dizem (sejam eles keynesianos ou monetaristas; e mesmo os austríacos acabam indiretamente por afirmar isso, ainda que de forma algo peculiar*) que uma expansão monetária pode provocar um aumento da produção já têm o seu caso mais do que "microfundamentado": "pensar em novos preços e efetivamente mudá-los dá trabalho e tem custos, logo o mais racional é só fazer isso de vez em quando; a juntar a isso, como muitas vezes a uma empresa ou trabalhador individual pouco adianta baixar o seu preço ou salário se não baixarem os do resto da economia [ver a citação de Scott Sumner lá atrás], temos a receita para os preços demorarem uma eternidade a ajustar-se, pelo que as variações na massa monetária afetam a economia real em vez de apenas os preços" (penso que em qualquer compêndio de Economia escrito desde, pelo menos, 1991 é assim que os efeitos da política económica são explicados). Pelo contrário, os que dizem que o aumento da massa monetária só faz subir os preços é que por vezes parecem acreditar num mecanismo automático, sem intervenção humana nem decisões individuais, através do qual a expansão monetária faz os preços subirem por si mesmos (basta assumirmos que os preços têm que ser subidos por alguém, que a dado momento do processo económico tem que haver um individuo que decide "vou subir o preço do pão de 1,58 euros para 2 euros" para chegarmos à conclusão que é impossível um aumento da massa monetária originar imediatamente um aumento do preço - tem que existir uma fase intermédia em que o aumento da massa monetária origina um aumento da procura, e que é esse aumento da procura que dá o sinal aos empresários para decidirem subir os preços; ou seja, o mecanismo não pode ser impressão de dinheiro → aumento de preços, tem que ser impressão de dinheiro → aquecimento da economia → aumento de preços) - a esse respeito, recomendo o post de Simon Wren-Lewis "Is the Walrasian Auctioneer microfounded?" (o post de Wren-Lewis parece-me ter sido escrito com a intenção de criticar o "microfundacionismo", mas acho que também pode ser usado para criticar o "anti-microfundacionismo", como estou a fazer aqui).

Uma nota final - interrogo-me se muitas das críticas ao individualismo metodológico, à economia neo-clássica e às microfundações não se basearão numa confusão subconsciente entre juízos positivos e normativos (achar que elaborar modelos assumindo indivíduos racionais e guiados pelo interesse próprio terá implícito admitir que ser guiado pelo interesse próprio é "bom").

*já que a teoria austríaca das recessões, de que serão a resposta a um crescimento artificial provocado por uma expansão monetária, implica aceitar que, efetivamente, um aumento da massa monetária aumenta a produção, pelo menos durante algum tempo

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