Monday, October 27, 2014

O IRS das pessoas sem filhos

Há dias, parte do país ia entrando em choque com a revelação de que as alterações do código do IRS para beneficiar as famílias com filhos dependentes, situação a que o governo respondeu com o tal esquema de se poder escolher a mais vantajosa de duas fórmulas.

Entretanto já toda a gente percebeu que "beneficiar famílias com filhos" e "prejudicar famílias sem filhos" são duas maneiras de dizer fundamentalmente a mesma coisa (no fundo, "discriminação positiva" é coisa que não existe: discriminar positivamente a favor de A implica discriminar negativamente contra B); afinal, se se quer obter uma determinada receita fiscal, e se reduz o que se cobra às famílias com filhos, tem que se aumentar o que se cobra às pessoas sem filhos.

Mas, em teoria, seria possível beneficiar as famílias com filhos sem prejudicar as sem filhos? Consigo imaginar duas formas de isso acontecer:

- Ali em cima escrevi "se se quer obter uma determinada receita fiscal", assumindo implicitamente que, no orçamento, a despesa é a variável independente e a receita fiscal a variável dependente, isto é, que se define um determinado nível de despesa e depois vai-se cobrar os impostos necessários para pagar essa despesa. Mas se for ao contrário, ser for a despesa que varia para se ajustar à receita em vez da receita se ajustar à despesa? Nesse caso, podemos perfeitamente reduzir o IRS das famílias com filhos sem aumentar as dos sem filhos, sendo o resultado uma redução da despesa pública (devido à redução da receita) - claro que é possível que essa redução da despesa também acabe por prejudicar alguém.

- Outro cenário em que é possível benefíciar as famílias com filhos sem prejudicar as sem filhos seria se a curva de Laffer tivesse uma forma diferente para as famílias com e sem filhos, de forma que as famílias com filhos estivessem no lado negativo da curva (em que um aumento dos impostos leva a menos receita) e as sem filhos no lado positivo; nesse caso seria possível baixar os impostos às primeira sem os subir (ou talvez até reduzindo um bocadinho) às segundas. Diga-se que quando comecei a pensar neste post, até me ocorreu que bastaria (mesmo estando ambos no intervalo positivo) que a inclinação da curva fosse maior para as famílias sem filhos (ou, dito de outra maneira, que a elasticidade da oferta de trabalho fosse menor para as famílias sem flhos do que para as com filhos) para ser possível benficiar umas sem prejudicar as outras, mas não: tal apenas levaria a que seria possível reduzir os impostos às famílias com filhos sem aumentar no mesmo valor às sem filhos, mas seria à mesma preciso aumentar (claro que se estiverem todas no lado negativo da curva, também é possível beneficiar um conjunto de famílias sem prejudicar as outras, mas aí o mais lógico seria baixar a toda a gente).

O problema prático deste cenário é que suponho que, no mundo real, são as famílias/pessoas sem filhos cuja oferta de trabalho varia mais com o rendimento e portanto com os impostos (ou seja, imagino mais facilmente um solteirão a deixar de fazer horas extraordinárias porque "os impostos levam quase tudo" do que uma família com dois filhos para criar, um deles na universidade), pelo que provavelmente a curva de Laffer até se torna negativa mais depressa para estes. Assim, (unicamente) do ponto de vista da eficiência económica se calhar até faria mais sentido cobrar taxas fiscais mais elevadas às famílias com filhos!

Já agora, convém notar que não é de agora que as famílias com filhos dependentes têm beneficios no IRS - há muito que, por cada dependente, se deduz não sei quanto à matéria coletável.

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