Saturday, August 31, 2013

"Inexperiência"

No Jugular, Paulo Pinto parece indignar-se com uma sentença dum tribunal de Aveiro, absolvendo um homem que teve relações sexuais com a sobrinha de 14 anos

Lendo a notícia (e dentro dos limites que um economista terá a pronunciar-se sobre questões jurídicas), não vejo o que há a apontar - a idade do consentimento em Portugal é aos 14 anos (salvo algumas excepções, que o tribunal considerou não se aplicarem nesse caso), logo não há aqui nenhum crime; o que queriam que o tribunal fizesse? Na verdade, suspeito que o que indignou Pedro Pinto foi a consideração que "o tribunal entendeu ainda que também não houve abuso sexual de adolescente, considerando que a rapariga não seria inexperiente, porque já tinha tido relações sexuais consentidas"; mas aí o problema não é o tribunal, mas sim mesmo no crime de "abuso sexual de adolescente" (artº 174º do Código Penal - 1 - Quem, sendo maior, praticar acto sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja por este praticado com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.; 2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias).

Há uns anos, este artigo só se aplicava às relações heterossexuais, enquanto as relações homossexuais com menores entre 14 e 16 eram sempre proibidas (sem a tal cláusula do "abusando da sua inexperiência"); tal foi alterado por uma sentença do tribunal constitucional, e agora o artigo 174º aplica-se a toda a gente; em tempo, a lei anterior foi muito criticada por ser discriminatória; mas, pelos vistos, ninguém reclama muito da lei atual, apesar de esta ser, na minha opinião, absurda (pelos vistos, muita gente incomoda-se muuito mais com o facto de uma lei ser discriminatória do que com a lei fazer ou não instrinsecamente sentido, estando dispostas a viver sem problema com uma lei absurdo, desde que a lei absurda se aplica a toda agente por igual). E porque acho que o artigo 174º do CP é absurdo? Aí, relembro o que escrevi há 8 anos:

Neste momento, à esquerda e à direita, temos uma guerra jurídica acerca dos “actos homossexuais com adolescentes” (o artigo 175º do código penal). De um lado, uns dizem que isso é discriminatório, já que pune sempre as relações homossexuais com adolescentes, enquanto o artigo 174º (“actos sexuais com adolescentes”) só pune as relações heterossexuais com adolescentes em certos casos (nomeadamente, através desse curioso conceito de “abusando da sua inexperiência”). Do outro, argumenta-se que a decisão de ter uma relação homossexual requer maior maturidade do que a de ter uma relação heterossexual.
Ambas as teses têm a sua lógica, mas há um ponto a que ninguém tem ligado – será que o artigo 174º (sim, esse mesmo, o 174º, não estou a falar do 175º), tal como está, tem alguma lógica?
Imagine-se a seguinte lei anti-alcoolismo: “É proibida a venda de bebidas alcoólicas a menores, a menos que estes sejam alcoólicos habituais”. Parece absurdo, não é? Afinal, até se poderia argumentar que é aos jovens com problemas de alcoolismo, sobretudo, que se deveria limitar o acesso a bebidas alcoólicas.
No entanto, é justamente isso que se passa com os “actos sexuais com adolescentes” e com a tal “inexperiência”, o que leva a situações caricatas como o caso “Farfalha” – o Farfalha foi condenado por vários crimes de “acto sexual com adolescentes”, mas os clientes não: o tribunal considerou que, como o Farfalha já tinha “experimentado” as raparigas, os outros já não tinham cometido nenhum crime.
Qual é o argumento de proibir sexo com menores de certa idade? A mim parece-me que é que pessoas muito novas podem não ter maturidade emocional e/ou intelectual para tomar certas decisões, e que, portanto, por exemplo, uma rapariga de 14 anos pode, de livre vontade, decidir ter relações com alguém, mas vir a arrepender-se mais tarde, e o que inicialmente até pode ter feito com despreocupação, vir-lhe a provocar traumas e dificuldades ao longo da vida. Mas aí é que entra a questão da “inexperiência” – o que é que diz que uma rapariga de 14 anos com “experiência” sexual é mais madura e emocionalmente equilibrada do que uma sem? Na realidade, até se poderia facilmente argumentar o contrário – que uma rapariga “experiente” de 14 anos é mais “gazeada da cabeça” que uma “inexperiente”, e que portanto até mais precisaria que a lei a protegesse (nomeadamente, dela própria); afinal, se se considera que o sexo precoce pode provocar traumas, perturbações de personalidade, etc., então uma rapariga que tenha sexo desde, digamos, os 12 anos, já estará emocionalmente perturbada aos 14 ou aos 15, e até terá mais dificuldade em tomar decisões sensatas e conscientes.
Assim, parece-me que essa conversa da “inexperiência” (que até abre a porta a discriminações de classe, género “os ‘pedófilos’* podem ir para a porta dos liceus de Chelas, mas não para ao pé do Colégio do Sagrado Coração de Maria”, ou até à tolerância para com a prostituição juvenil) devia ser varrida da lei, talvez baixar o limite máximo (para compensar o facto de a lei se passar a aplicar a “experientes” e “inexperientes”), e adoptar-se uma lei do género:
Quem, sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor entre 14 e 15 anos é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”

Claro que a lei actual tem uma justificação histórica – é uma herança do antigo crime de “estupro”, que punia quem por meio de sedução ou falsa promessa de casamento, estuprar mulher virgem, maior de doze e menor de dezoito anos” (a formula era mais ou menos assim), que mais não era que a fórmula legal para os pais obrigarem ao casamento quem lhes desvirginasse as filhas. E quando essa lei foi abolida, decidiu-se deixá-la, numa versão mais soft. Registe-se que antigamente era permitido ter relações com raparigas de 12 anos, desde que já não fossem virgens. A proibição do sexo com meninas de 12 anos, que entretanto ocorreu, deve ser a tal “decadência moral do Ocidente” que tanto se fala
* tecnicamente, nestas idades (14-16) já não se considera pedofilia, mas enfim…
Uma nota - neste momento, eu não me revejo em tudo o que escrevi há 8 anos; nomeadamente, acho que há mais uma razão (além da que referi então) para ilegalizar (ou pelo menos reprimir sob a forma de tabus culturais) relacionamentos sexuais (ou puramente amorosos) entre adultos e adolescente. É essencialmente a mesma que faço aqui acerca da poligamia: numa sociedade em que as relações sexuais/amorosas adulto/adolescente fossem aceites, penso que não há grandes dúvidas que os casos homem/rapariga não iriam ser compensados por igual número de casos mulher/rapaz (basta ver o que se passa nas idades em que os relacionamentos inter-geracionais são aceites); e esse desequilibro em breve iria fazer o Correio da Manhã ficar cheio de notícias "Homem de 45 anos esfaqueado por rapaz de 15" ou "Rapariga adolescente queimada com ácido por empregada da escola". Mas acho que este detalhe em nada invalida o que escrevi sobre o absurdo do artigo 174º.

Outra nota - nos comentários ao posto do jugular, alguém escreve "mesmo que a miúda de 14 anos tivesse consentido, seria crime na mesma. é menor ou não tem maioridade penal ou não tem 18 e nem sequer 16"; interrogo-me onde é que as pessoas vão buscar certas ideias. O que é que os 18 anos interessam para aqui? A "idade do consentimento" em Portugal é aos 14; na Europa anda pelos 14-16; no Terceiro Mundo é melhor nem falar; se nos limitarmos ao mundo em que o sexo fora do casamento é permitido, se calhar só em alguns estados dos EUA é que a "idade legal" é aos 18 anos (noutros anda pelos 16-17). Diga-se que um desses estados é a Califórnia, e, ainda por cima, creio que é dos poucos estados é que é crime sexo entre alguém de 18 anos e 1 dia e alguém de 17 anos, 11 meses e 29 dias (muitos dos outros estados dos EUA têm cláusulas dizendo que a lei não se aplica se os envolvidos tiverem idades aproximadas). Será que o facto de o mundo inteiro ver filmes feitos num sitio (Hollywood, Califórnia) sujeito a uma legislação (tanto a nível mundial, como a nível dos próprios EUA) largamente exótica leva a uma ideia distorcida das leis realmente em vigor no conjunto do mundo?



Thursday, August 22, 2013

Snowden traidor?

Rodrigo Moita de Deus escreve que "Mas Snowden é um traidor. Traiu o seu país. E isso é crime. Julgo que em qualquer parte do mundo".

Pelo menos de acordo com a lei norte-americana, Snowden não é um traidor:

 Treason is a serious charge, of course. It is the only crime specifically defined in the Constitution, and it carries the possibility of a death sentence. At the same time, though, actual charges of treason have been relatively rare in recent years. According to this list, there have only been fourteen convictions for treason in the history of the United States, with the last being in 1952 when Tomoya Kawakita, a Japanese born American citizen was convicted on charges of torturing American POW’s during World War II. Contrary to popular belief, Julius and Ethel Rosenberg were convicted of violations of the Espionage Act, not treason, for which they were later executed. Additionally, none of the Americans caught spying for the Soviet Union or other nations during the Cold War were convicted of treason.

As Seth Lipsky explains in a recent Wall Street Journal piece, Snowden will also avoid an indictment for treason simply because what he is accused of does not meet the elements of the crime:

Friday, August 16, 2013

A questão das limitações dos mandatos

Na polémica sobre se a lei da limitação dos mandatos se aplica ao exercicio em geral do cargo ao exercicio de uma cargo numa autarquia especifica, há uma questão que não tem recebido tanta antenção como a que se calhar devia - casos como Algoz, em que o presidente com 3 mandatos é agora candidato à freguesia de Algoz-Tunes (resultado da fusão das freguesias de Algoz e de Tunes).

Este género de casos parece-me distinto dos casos Menezes, Seara, etc,, já que aí o candidato candidata-se a uma freguesia na área geográfica e "herdeira institucional" da freguesia que governou durante 3 mandatos; ou seja, mesmo que o Tribunal Constitucional diga que o Seara ou o Menezes se podem candidatar, não me parece que tal implique automaticamente que os presidentes da junta que se candidatam a freguesias unificadas o possam fazer.

Inclusive por uma razão - um argumento que pode ser usada para defender a candidatura de presidentes com 3 mandatos a outros munícipios é de que o motivo para a limitação dos mandatos era que um presidente há muito tempo no poder pode criar uma rede de dependências e cumplicidades que o torne imbativel, e assim a limitação dos mandatos é para assegurar eleições verdadeiramente justas. Nesse caso, poderia ser argumentado que não se justificaria a proibição de concorrer a outro municipio - afinal, nesse outro municipio o ex-presidente já não benificia da tal rede de influências; mas numa freguesia unificada, os ex-presidentes das freguesias originais continuam na mesma a ter as suas redes (ainda que talvez enfraquecidas, por agora estarem diluidas numa população maior)

Porque os protestos resultam (ou não)

Why Sit-Ins Succeed -- Or Fail, por Erica Chenoweth (Foregin Affairs, via The Monkey Cage):

For weeks, opponents of Egypt’s military-led transitional government have held mass sit-ins in Cairo, Alexandria, and elsewhere in an attempt to force the generals to reinstate President Mohamed Morsi. In doing so, they are following the tactics of the activists who have occupied China’s Tiananmen Square to protest communism, the Philippines’ Epifanio de los Santos Avenue to demand the ouster of President Ferdinand Marcos, the United States’ National Mall to denounce the Vietnam War, and countless others. (...)

Civil resistance involves unarmed people using a combination of actions, such as strikes, protests, sit-ins, boycotts, and stay-away demonstrations, to build power and effect change. In his analysis of historical cases of civil resistance, Gene Sharp, the founder of the Albert Einstein Institution, identified nearly 200 methods of nonviolent action, ranging from protest to persuasion, intervention to noncooperation. Since his seminal text was published in 1973, experts have identified thousands more.

Although there is no set formula that guarantees success, from 1900 to 2006, the single most important factor was wide participation. The larger and more broad-based the campaign was, the more likely it was to succeed. In fact, all of the other factors associated with success -- elite defections and the backfiring of repression -- seemed to depend in part on the size and diversity of the campaign to begin with. That all makes sense: large campaigns are more likely to seriously disrupt the status quo. Diverse campaigns are more likely to be perceived as representative, hence legitimate.
Take, for example, Egypt in 2011. Small protests that began on January 25 soon escalated. They came to involve millions of Egyptians from a remarkable cross-section of society. President Hosni Mubarak attempted to disperse protestors occupying Tahrir Square, but he soon found that his own security forces were unreliable. Many simply ignored his orders and others joined the protests outright.
Contrast that example with the recent Muslim Brotherhood-led sit-ins. Those involve primarily young men, whose claims to legitimacy are contested. Although these civilians do have allies among the Egyptian population, they do not boast the same numbers as the Tamarod movement that ousted Morsi, which had its roots in earlier anti-Mubarak sentiment. And whereas Tamarod assembled tens of millions of signatures calling for Morsi to step down and led influential government elites to defect, the pro-Morsi faction has not.
Now, security forces are showing little hesitation in repressing pro-Morsi protestors, meaning that participation may become even more risky. And that would further undermine the movement's ability to solicit more support from more diverse participants who aren’t able to take as many personal risks to bring about change. In general, it is hard to predict in advance whether a movement's goals will resonate with a wider population at any given time. But in terms of attracting people to the cause and keeping them involved, sensitivity to their exposure to risk is key.

Indeed, campaigns that shifted between high-risk methods, such as protests and sit-ins, and lower-risk methods, such as stay-at-home demonstrations, had greater staying power, momentum, and resilience than campaigns that relied on a single method. There are many reasons: For one, all would-be participants have different levels of risk acceptance. Not everyone is willing to stand in place while a column of tanks approaches. But risk-averse participants may be willing to sing illegal songs or to shut off their electricity at a coordinated time of day. The more ways there are to participate in civil resistance, the more -- and more diverse -- participants there will be. In addition, since each tactic carries a slightly different risk and provokes a different response, movements can sequence their tactics over time to diminish the regime’s ability to crush them.

Sit-ins, for example, have a couple of tactical benefits. They demonstrate a movement’s resolve, shut down access to key buildings, force the regime to make a move, and create a media-friendly disruption in the short term. When combined with other methods, such as general strikes or boycotts, authorities may find them quite difficult to deal with.

However, the longer sit-ins go on, the riskier a strategy they become for the protesters. To be sustainable, sit-ins require participants who are willing to subject themselves to considerable discomforts (missing work, going hungry, sleeping outdoors, dealing with unsanitary conditions over time). Such conditions mean that the diversity of the participants generally declines over time, as mothers, children, and older people peel away. That leaves the youth -- males in most cases -- which may compromise the movement’s perceived legitimacy.

Further, like many other methods that are concentrated in specific public spaces, sit-ins can make participants quite vulnerable to repression. That is especially dangerous for campaigns in their early stages, before they have attracted enough supporters with diverse social, economic, and political views to capture the public’s hearts and minds. And although repression can sometimes backfire, movements that deliberately provoke it are taking a major risk. In fact, experienced organizers often think of sit-ins and nonviolent occupations as methods to be used at the end of a nonviolent campaign -- after extensive planning and training has taken place, and after the movement has built a diverse and committed following through everyday forms of resistance, including celebratory gatherings with party-like atmospheres, silent marches and demonstrations, flash mobs, walk-outs, signature-gathering, protests, and even attempts to negotiate -- rather than at the beginning, when smaller and less diverse movements haven’t yet built enough legitimacy to deter a major crackdown. (...)
One of the most dangerous misconceptions about civil resistance is that several weeks of street demonstrations or sit-ins can bring about major systemic change. On the contrary, the average civil resistance campaign takes nearly three years to run its course. Although three years might sound like an eternity, the average violent campaign takes three times longer and is twice as likely to end in failure. History shows that civil resistance campaigns tend to succeed when they build the quantity and quality of participants, select tactics that provoke loyalty shifts among ruling elites, prepare enough to maintain nonviolent discipline, and skillfully change course under fire to minimize the damage to participants. All of this takes time, organization, preparation, and a good deal of strategic imagination.

Thursday, August 15, 2013

A saída da crise

Mesmo a propósito, este post que publiquei há 15 dias (as economias europeias estão sempre "a sair da crise" devido à maneira como na Europa se define "recessão").

Thursday, August 01, 2013

O caso Crivelli

Para falar a verdade não tenho ligado muito ao caso do quadro do Crivelli. Após ler este post de Luis Aguiar Conraria, fui fazer uma pequena busca na net sobre a história do quadro.

Pelo que percebo, trata-se de um quandro que um pintor veneziano pintou em Itália durante o Renascimento. Bem, e pergunto eu, que diferença faz que esse quadro esteja em Portugal ou em qualquer outro país do mundo? Percebia que houvesse um clamor público no sentido do governo italiano ou da autarquia veneziana comprassem o quadro, mas não vejo o que é que isso interessa especificamente a Portugal.

Reconheço que há um ponto especial neste caso - como nota o Luis Rainha, o quadro esteve proibido de saír do país (o que desvalorizou o seu preço), e depois da família a que pertenceu durante décadas o ter vendido a Paes do Amaral, foi autorizada a venda para fora do país, o que fez subir o seu preço. É uma situação semelhante à daqueles terrenos rurais que, depois de vendidos, passam a urbanizáveis. Talvez a melhor solução para esses problemas fosse criar uma taxa de mais-valias a ser aplicada quando uma obre de arte "sequestrada" fosse libertada (e, inversamente, uma compensação por menos-valias quando uma obre de arte adquirida no mercado livre fosse "sequestrada").