Friday, March 09, 2012

Endividamento para pagar cursos

No Blasfémias, é aventada a tese que, se os futuros licenciados tiverem que pagar os cursos (e endividarem-se para isso), "[a] qualidade do ensino e a empregabilidade dos cursos tornar-se-ão assim os requisitos principais da concorrência entre Universidades. Cursos da treta, que apenas garantem o título académico e o empolamento da economia não transaccionável, tenderão a desaparecer".

Essa teoria é muito popular, mas parece-me não ter grande suporte, nem na prática, nem na teoria.

Na prática, pelo menos em Portugal, é no ensino pago (particular) que proliferam os "cursos da treta".

Mesmo em teoria, não há grande razão para, se alguém ter que pagar o curso, seja mais cuidadoso a escolhé-lo: pelo menos, se seguirmos o paradigma do Homo economicus, que tenta sempre obter o máximo de benefícios com o mínimo de custos, os estudantes irão escolher sempre o curso com maiores possibilidades de rendimento (estou adoptando uma definição ampla de "rendimento", que incluí também satisfação pessoal, estauto, etc., e não apenas rendimento monetário), idependentemente de pagarem ou não pelo curso; vejo realmente um mecanismo pelo qual o ensino pago e, sobretudo, o endividamento podem orientar os alunos para cursos com maior rentabilidade: é lógico assumir que, quanto mais "pobre" alguém for, maior importância irá dar a coisas como "dinheiro" e "emprego" face a coisas como "satisfação profisional"; ora, se os estudantes têm que pagar os cursos universitários e endividarem-se para isso, isso vai "empobrecé-los" relativamente a um cenário em que a formação universitária fosse gratuita, logo irá fazé-los dar mais importância à empregabilidade e menos à satisfação profissional.

Mas mesmo esse efeito não me parece tão linear assim:

a) se o terem que pagar a formação universitária "empobrece" os estudantes à saída da universidade (porque nesses anos tiveram a gastar dinheiro), "enriquece-os" à entrada (porque afastará alguns alunos de meios desfavorecidos), logo temos dois efeitos de sinal contrário

b) Se os cursos com mais empregabilidade forem mais caros (pondo as coisas de outra maneira  - montar uma universidade com cursos de Relações Internacionais, Gestão de Recursos Humanos e Ciências da Comunicação é relativamente barato), um aumento da comparticipação dos alunos no custo da educação irá afastá-los desses cursos (no fundo, no sistema actual, pelo menos no ensino público, os estudantes de Química e de Engenharia dos Materiais estão a ser subsidiados desproporcinalmente, o que em príncipio atrairá alunos para esses curso).

Mais um ponto, acerca da tese que as escolhas académicas dos alunos portugueses contribuiem para o enviesamento da economia em favor dos sectores não-transacionáveis (ver também aqui): aparentemente, os preços no sector não-transacionável têm crescido mais que no sector transcionável; ora, se o que se estivesse a passar fosse muita a gente a tirar cursos e a procurar empregos nos sectores não-transacionáveis, o resultado deveria ser o oposto - a inflação ser menor nesses sectores (aumento da oferta > redução dos preços).

1 comment:

Anonymous said...

"ora, se os estudantes têm que pagar os cursos universitários e endividarem-se para isso, isso vai "empobrecé-los" relativamente a um cenário em que a formação universitária fosse gratuita"

Não há almoços grátis! Pelo menos aí temos de concordar com a direita. Os cursos são pagos por todos os contribuintes. E sim, quem opta por ser carpinteiro terá à partida rendimentos inferiores a quem tem um curso universitário (pelo menos foi assim até há pouco tempo). E está o carpinteiro, com os seus impostos, a pagar alguns cursos que não só não têm saída profissional como existem em universidades que não têm qualidade suficiente para existir. Ser de esquerda não lhe pode fechar os olhos a esta realidade.

De resto, a observação de que os cursos de treta existem mais no sector privado é na mouche. Embora o mercado não valorize esses cursos - por exemplo, quem é que dá credibilidade ao Sócrates como engenheiro?
Por isso somos forçados a reconhecer que é o facto de vivermos numa economia "mista" que faz com que faça sentido tirar essas licenciaturas de treta. Porque quando se concorre a um concurso público a licenciatura no curso X vale o mesmo quer seja tirado na universidade A ou no instituto B. Numa empresa privada as coisas não são vistas do mesmo modo.

A questão da escola pública devia ser debatida à esquerda com muita seriedade. Em que critérios nos devemos basear para gerir o número de cursos bem como o número de alunos por curso? (E já nem digo nas condições de uma sociedade social-democrata, digo mesmo como gerir isso idealmente no socialismo...)