Saturday, August 28, 2010

As virtudes da auto-suficiência

[A respeito deste post d'O Insurgente]

Eu vejo pelo menos duas boas razões para um individuo tentar ser o mais auto-suficiente economicamente (isto é, ser ele a produzir grande parte dos bens e serviços que consome) possível

A primeira é que um individuo vivendo em regime de autoconsumo não está sujeito ao perigo de desemprego nem é afectado pelas crises económicas (pelo menos, da forma que existem actualmente); no caso extremo de alguém que viva numa cabana nas montanhas (construída por ele), cultivando o seu quintal, caçando nos bosques vizinhos e pescando no ribeiro, e tecendo as suas próprias roupas, sem vender ou comprar nada ao resto do mundo, o PIB pode descer 10% e o desemprego pode duplicar que nada lhe acontece a ele (basicamente, o problema do desemprego só existe por causa... do problema do emprego; alguém que não precise de procurar emprego não está sujeito ao desemprego); no caso (mais realista) de alguém que tenha um emprego mas que costume ir à pesca no fim-de-semana, tenha uma horta onde cultive verduras e faça a maior parte das obras e arranjos eléctricos lá em casa, ele continua a poder ser afectado pelas crises económicas, mas menos que alguém que todo o rendimento real esteja dependente do mercado (se for para o desemprego continua a ter acesso aos bens e serviços que ele próprio produz).

Aliás, quase todas as teorias explicativas das crises económicas (keynesianismo, monetarismo, "escola austríaca"...) explicam-nas a partir da moeda (seja porque os agentes querem acumular mais moeda que a que têm, ou porque a quantidade de moeda diminuiu, ou porque aumentou...); assim, podermos concluir que numa economia sem moeda não haveria este género de crises (embora pudesse haver outras).

Outra vantagem é que a maior parte das pessoas nas sociedades modernas são trabalhadoras assalariadas, ou sejam, trabalham sob a direcção de outras. Assim, passar uma hora, digamos, a afinar o motor do seu próprio carro tem uma vantagem face a passar mais uma hora no emprego a ganhar o dinheiro para pagar a uma oficina - no primeiro caso, é ele próprio que dirige o seu trabalho, que pode executar no hora e local que lhe dá mais jeito, quiçá até com a roupa com que se sente mais à vontade, etc., enquanto na hora passada no trabalho formal está submetido à disciplina organizacional.

Diga-se, desde já, que estes meus argumentos a favor da auto-suficiência não me parecem escaláveis do nível individual para o nível de um país: ao contrário do que se passa com os indivíduos, não é por um país ser auto-suficiente que deixa de estar sujeito a ciclos económicos, nem menos sujeito à tal "disciplina organizacional" (até há quem diga o oposto - que o proteccionismo favorece a concentração dos grupos económicos). Esta observação pode ter alguma importância porque me dá a ideia que muitas discussões sobre a auto-suficiência individual usam-na sobretudo como metáfora para a questão da auto-suficiência nacional, seja a favor ou contra.

Sugestão de leitura adicional - O Direito ao Desemprego Criador, de Ivan Illich

[Post publicado também no Vias de Facto; podem comentar lá]