Saturday, May 09, 2009

A sublevação na Bela Vista e as condições económicas

Face às declarações do ex-bispo de Setúbal, atribuindo os tumultos na Bela Vista em parte às más condições económicas e sociais, há quem comente "o que é que tem uma coisa a ver com a outra"?

Na verdade, só quem for um analfabeto económico não vê a ligação (se quem escreveu "o bispo não percebe nada de economia, nem de sociologia" estiver a falar a sério, então precisa de espelhos em casa).

P.ex., imagine-se alguém a decidir se participa ou não num motim contra a policia e a pesar os prós e os contras (esse "pesar" não é necessariamente uma deliberação consciente); do lado dos prós, teremos o prazer emocional de descarregar a raiva contra a policia, e também ganhar algum estatuto no bairro como "duro", "corajoso", "leal aos seus amigos", etc.; do lado dos contras, temos poder levar um tiro, ser preso, etc.

Ora, quanto menores forem as perspectivas de vida de uma pessoa, menor é o custo de ser preso ou de levar um tiro; se uma pessoa que tenha um bom emprego for presa, fica com a vida estragada: perde o seu emprego, irá passar uns anos numa prisão muito menos confortável que a casa onde vivia, e, quando sair dificilmente arranjará um emprego com as condições que tinha antes (provavelmente terá que recomeçar a carreira do inicio); já uma pessoa que ganhe a vida em empregos ocasionais e com poucas perspectivas, passar ou não uns tempos na cadeia pouca diferença fará para a sua vida futura. No fundo, podemos dizer que o custo de oportunidade de ser preso (ou mesmo de morrer, já agora) é maior para alguém de classe média do que para um habitante de um bairro social.

Portanto, vamos regressar ao tal individuo a pensar se se junta ou não ao motim; como vimos, quanto melhor a sua situação económica, maior são os custos que atirar cocktails molotov à policia poderá ter para ele. Logo, quanto mais pobre eu for, maior a probabilidade de me envolver em distúrbios.

Poderá argumentar-se "a maioria dos pobres não se envolve em distúrbios". Irrelevante - a pobreza o que faz é aumentar os incentivos para actos criminosos; nem toda a gente irá reagir a esses incentivos mas, "na margem", haverá sempre alguém que, sendo pobre, irá cometer crimes que não cometeria se fosse rico ou de classe média (e não me refiro apenas a crimes contra a propriedade, como roubos; o raciocínio que apresentei acima - um pobre tem menos a perder em ser preso - aplica-se a todo o tipo de crimes).

Outra critica que poderá ser feita ao meu raciocínio é que ignora questões como os valores morais; mas não - temos que pensar em termos de ceteris paribus (isto é, "tudo o mais ser igual"). Se os pobres, à partida, têm menos a perder em cometer crimes, cometerão mais crimes, mesmo que tenham os mesmos valores morais que a classe média (se os custo de ser preso é menor para os pobres, e se o "custo" psicológico/moral de cometer um crime for igual para os pobres e para a classe média, isso que dizer que o custo total de cometer um crime continua a ser menor para os pobres). A moral só podia ser um travão a que os pobres cometessem mais crimes se os pobres tivessem valores morais mais rígidos do que o resto da população (para contrabalançar o efeito "menos a perder").

O mesmo pode ser dito acerca da dureza de penas - se as penas fossem mais pesadas, em principio o custo de cometer crimes seria maior em termos absolutos; mas, mesmo que o custo fosse maior para toda a gente, para os pobres continuaria a ser menor do que para a classe média. De novo, a dureza penal apenas poderia anular o efeito "pobreza » crime" se as penas fossem mais pesadas para os pobres (bem, realmente se calhar até são...).

Ainda voltando à questão da moral, há outro factor que quero frisar - normalmente nós interiorizamos as nossas normas morais por imitação. Ou seja, o efeito da moral até acaba por ampliar os efeitos das diferentes condições económicas:

Imagine-se um bairro rico e um bairro pobre; à partida, os habitantes dos dois bairros tem exactamente os mesmos preconceitos morais contra o crime; no entanto, mesmo assim, haverá sempre um bocadinho mais de crime no bairro pobre do que no rico (pelo mecanismo que já expliquei); mas, se há mais crime no bairro pobre do que no bairro rico, as crianças que crescerem no primeiro irão crescer com um bocadinho de menos aversão ao crime do que as do segundo (já que vêm mais gente a cometer crimes); e, com o tempo, o crime no bairro pobre vai aumentando ainda mais, já que aí temos dois efeitos conjugados: o efeito de os pobres terem menos a perder com o crime, e o efeito de viverem numa cultura progressivamente mais tolerante face ao crime (isto até dava para fazer um sistemazinho de equações, sendo as condições económicas as variáveis exógenas, e o crime e a moralidade as variáveis endógenas).

Já agora, aproveito para fazer outra vez esta citação de Chris Dillow: "neoclassical economics (...) tells us (...) that poverty causes crime."

E, também, para relembrar a minha tese que é possível usar a economia neo-clássica para defender posições de esquerda (este post que estão a ler pretende ser um exemplo disso).

3 comments:

Filipe Abrantes said...

Excelente post, bravo. Os ricos não querem confusões, nada têm a ganhar.

Diogo said...

Muito bom raciocínio. Parabéns.

Rui Fonseca said...

Subscrevo.

Mas o que propõe?

Eu proponho o "trabalho mínimo de inserção".

Se o Estado paga subsídios de desemprego e o rendimento mínimo social de inserção porque não se pedem contrapartidas sob a forma de serviço cívico. Há tanto para fazer em Setúbal. Aumente-se o rendimento mínimo social de inserção para os que trabalharem para a comunidade.

A crise do Bairro da Bela Vista, e a de todos os bairros ditos problemáticos, não é de hoje nem vai desaparecer quando passar a crise. Aliás, lamentavelmente, a nossa crise não passará com a passagem da crise global.

É forçoso pôr as pessoas a trabalhar.A ociosidade é sempre fonte de maus vícios. E não se pode esperar que as condições económicas venham a reduzir os níveis de desemprego tão cedo.

Independentemente do que fizerem as forças de segurança e os tribunais no sentido de fazerem respeitar a lei.