Thursday, January 25, 2007

Legalização do aborto, uma causa natural da esquerda

João Miranda escreve acerca das supostas contradições da esquerda no questão do aborto:

"1. A esquerda gosta de defender os mais fracos, mas no caso do aborto toma partido contra a parte mais fraca"

A questão é se o embrião é uma "parte". E entre uma mulher acusada de aborto e o aparelho repressivo do Estado, a primeira é inequivocamente a parte mais fraca.

Apesar de tudo, este ainda é o melhor ponto de JM. Os outros quase que não fazem sentido:

"2. A esquerda tende a defender o controlo centralizado da sociedade e uma certa moralidade pública em questões como o emprego, a saúde e a educação"

Afirmar que a esquerda tende a defender o "controlo centralizado da sociedade" faz tanto (ou tão pouco) sentido como dizer o contrário: a esquerda tende a defender o controlo centralizado quando este é usado para o que a esquerda considera "atacar as classes dominantes" e a ser contra quando este é usado para "proteger as classes dominantes". P.ex., se o controlo centralizado for usado para obrigar um patrão a pagar salários mínimos, a esquerda é a favor; se for usado para impedir uma "comissão de trabalhadores" de sanear o patrão (mandando a GNR repor a "ordem"), a esquerda é contra. A única razão porque a esquerda, às vezes, parece defender o controlo centralizado per si é porque numa democracia tende a haver mais "controles centralizados" de "esquerda" do que de "direita", pelo simples facto de haver mais eleitores com rendimentos/riqueza abaixo da média do que acima.

Quanto à questão se a proibição do aborto é um "controlo centralizado" de "esquerda" ou de "direita", remete para o ponto 1.

"3. Para a esquerda a solução para a miséria é o apoio do estado. Nunca a iniciativa dos indivíduos para resolver os seus problemas."

O que caracteriza a esquerda é achar que a pobreza é consequência de uma "estrutura social opressiva" e que a solução para ela é mudar a sociedade, enquanto a direita tende a achar que a pobreza, ou é "natural" (eventualmente "divina") ou é culpa individual dos pobres.

Ora, querer resolver problemas sociais legalizando o aborto (e nem toda a esquerda defende a legalização nessa base) é querer resolver problemas sociais através de uma mudança na estrutura social (mais exactamente, de uma lei), logo encaixa-se na tradição da esquerda.

Já agora, até acho que o discurso do "apoio do estado" até vem mais da chamada "direita com preocupações sociais" do que da esquerda clássica; a posição tradicional da esquerda não é (ou era) tanto que os pobres precisassem de "apoio" mas sim de "justiça", e essa justiça ser feita pelo Estado e não de forma não-estatal (o modelo "Garino") é mais por uma questão prática do que filosofia profunda (afinal, a maior parte da direita - ainda maior que à esquerda - também defende que o seu conceito de justiça seja posta em prática através do Estado).

"4. A esquerda não reconhece as virtudes da liberdade de escolha quando se fala em questões económicas e sociais, excepto quando se fala de aborto. Toda a actividade económica e social tem que ser regulamentada porque a ordem espontânea é uma selva e as pessoas precisam de ser governadas e orientadas. A única situação em que a liberdade individual é virtuosa é no caso do aborto."

A esquerda, frquentemente, defende: a legalização das drogas; a livre imigração; restrições ao poder policial; o Estado laico; a legalização (ou facilitação, quando já é legal) do divórcio; um sistema penal que recorra pouco a penas privativas da liberdade; por vezes, o abaixamento da idade da maioridade (pelo menos, quando isso é uma questão politica relevante), a "gestão democrática das escolas" (enquanto a direita costuma, para o ensino público, defender "directores" nomeados pelo governo), etc.; franjas da esquerda mais radical também defendem que os alunos aprendem melhor se só estudarem quando lhes apetece; que os trabalhadores não precisam de superiores hierárquicos para nada; que viajar em planos de agências de viagens é "estupidificante", etc. Parece-me que a legalização do aborto encaixa perfeitamente nesse padrão.

"5. A esquerda gosta de regular os mais ínfimos detalhes da actividade privada, como se viu no caso dos arredondamentos dos juros ou no caso da regulamentação dos períodos de cobrança dos parques de estacionamento. Mas no caso do aborto é contra qualquer tipo de regulamentação."

Primeiro, duvido que a esquerda "
no caso do aborto [seja] contra qualquer tipo de regulamentação" (não sei de nenhuma esquerda que defenda a liberalização total do aborto até ao nascimento); em segundo, este ponto 5 não passa de uma cópia do ponto 4, logo repito o que lá escrevi.

"6. A esquerda aceita e pratica uma certa moralidade de estado. É por isso que podemos ver ministros preocupados com questões que são do âmbito da vida privada. "

A direita defende muito mais a "moralidade de estado" que a esquerda (normalmente a expressão "função pedagógica da lei" costuma sair mais de bocas ou penas de "direita" do que de "esquerda") - e se definirmos "
questões que são do âmbito da vida privada" como "questões que não afectam terceiros" a direita até é muito mais dada a intervir nelas do que a esquerda: as intervenções da esquerda costumam ser justificadas com o argumento de proteger terceiros, enquanto que a direita é mais dada a querer proteger o individuo dele próprio.

1 comment:

Afonso Gaiolas said...

Olá a todos,
O ideal cívico compele-me a deixar-vos a minha opinião, velha de quase dois anos, mas à qual não retiro ou acrescento uma vírgula.

Um abraço,
Afonso Gaiolas

Sexta-feira, Abril 22, 2005

Referendo sobre o aborto, ou um aborto de referendo?

Diz-se daqueles que, apesar de receberem contínuos sinais de recusa das fêmeas que tentam cortejar, apesar de engolirem mais sapos do que as margens da ribeira de Cobres albergam, se insinuam de tal forma insistentemente que a conquista do troféu se dá pelo cansaço, diz-se, dizia eu, que a façanha foi conseguida por "esmagamento".
Serve esta analogia para ilustrar o que me parece ser o pensamento de alguns sectores da nossa sociedade face à problemática do aborto em Portugal.
Merece o assunto as controvérsias de proporções bíblicas que proporcionou nos últimos tempos?
Tudo isso e muito mais.
Penso, contudo, que muito se tem rematado, mas continuamente ao poste, poucas vezes se discutindo o que realmente interessa debater.
Vou começar pela própria palavra ABORTO - Acto ou efeito de abortar. Nunca o dicionário refere a aniquilação de um ser como significado da palavra, mas ao invés, define-a como a expulsão do feto antes do fim da gestação, ou ainda "o que nasceu (começou a ter vida exterior) prematuramente".
Curiosa esta diferença conceptual de vida exterior e interior, tão curiosa que nalgumas comunidades que não a nossa, de desenvolvimento imaculado e mãos sempre limpas, se considera a contagem de ambos os períodos na idade das pessoas.
Todos consideramos como o mais hediondo dos crimes a eliminação de um ser recém-nascido. Pois bem, construamos uma simples fita de tempo. No intervalo temporal D+x (sendo D o momento do nascimento e x qualquer período que escolhamos (1 mês, 1 ano, 10 anos, 100 anos, ...), a palavra assassínio estará sempre presente, se decidirmos aniquilar um ser humano em qualquer destas idades. Mais complexa se torna a análise se trocarmos o sinal da adição pelo da subtracção. A partir de que momento consideramos estarem reunidas todas as condições para que, em consciência, possamos afirmar existir VIDA? Pensar demasiado sem conhecimento científico suficiente, torna angustiante a busca de respostas. Confesso que foi o que me aconteceu. Tanto mais que a proliferação de artigos sobre o tema em causa só torna ainda mais nebulosa a formação de uma opinião. Uma fracção de segundo, um dia, dez, doze, dezasseis semanas ou nove meses?
Defendo que as leis de um país se devem reger pelos valores morais que os seus cidadãos consideram ser os correctos, nunca se devendo ceder à tentação de resolver um problema com outro problema. Não me serve portanto o argumento da falta de informação, da má qualidade das instituições de solidariedade social que prestam a educação a quem não pôde ser acolhido por uma família, da inconveniência temporal, ou qualquer outro de cariz similar.
Em coerência devo portanto afirmar que, sendo o valor da vida o mais importante na escala das pertenças individuais, a partir do momento em que cientificamente me provarem que a centelha existe, devem ser repudiados todos os actos contrários ao seu desenvolvimento e maturação.
Pois, pois, centelha é muito vago...
Estava só a tentar ganhar tempo para que o meu cérebro me ajudasse...
Disse cérebro?
Se trocarmos um rim, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
Se trocarmos de coração, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
E se trocarmos de cérebro?
Eu convictamente penso que não. Acredito aliás que a verdadeira fonte de longevidade para os seres humanos reside na substituição de "componentes", preservando ao máximo o único insubstituível - o cérebro.
Reside aqui portanto a resposta à minha pergunta.
É verdade que no momento da concepção, potencialmente temos uma vida a ser gerada. Mas estamos ainda no domínio das células indiferenciadas, e a verdade é que, mexendo os cordelinhos certos, ou errados, conforme o ponto de vista, podemos gerar uma miríade de monstruosidades que com a vida nada têm em comum. Não considero portanto que os inúmeros bancos de embriões existentes pelo mundo sejam imorais, uma vez que a essência de cada ser individual ainda não existe - que o cérebro ainda não se formou.
Parece ser cientificamente aceite que todos os principais componentes do cérebro são claramente distinguíveis praticamente cinco semanas após a concepção. Assim sendo, em nome da coerência, até essa data (ou qualquer outra mais precisa que cientificamente seja acreditada) não deveria ser criminalizada, penalizada, ou sequer moralmente condenável a decisão de inviabilizar a evolução do embrião. Dentro deste período, englobar-se-iam os casos excepcionais já previstos na nossa legislação, exceptuando claro o risco de vida para a mãe. Para a análise de malformações, ter-se-ia que fazer um esforço, grande, é certo, mas realizável se bem direccionado no sentido de, por análise genética, se determinar o mais precocemente possível a sanidade de cada futuro ser humano.
Tendo tornado clara a minha posição, resta-me tecer um comentário, necessariamente cáustico ao slogan "A barriga é minha, faço dela o que quiser!", e outras idiotices do mesmo calibre, que só tornam ridícula a posição de algumas mulheres, que pensam ser este o cavalo de batalha final contra a opressão masculina. É verdade que é o indivíduo do sexo feminino o veículo hospedeiro do novo ser que está a ser gerado, e que provavelmente é o acto mais nobre a que alguém poderá em toda a sua vida aspirar, mas isso não tira o direito e simultaneamente a responsabilidade do homem perante o seu filho. Deveríamos pois ver ambos os progenitores condenados pelo acto abortivo, se existisse o conhecimento da acção, mas pela mesma ordem de ideias, negar a unilateralidade materna na decisão de continuar, ou não, com o processo de gestação.
Quanto aos direitos sobre a barriga, esses são inalienáveis (embora algumas devessem receber mais conselhos sobre estética), mas quando se trata da geração de um novo ser, ainda e sempre reaparece o velho, mas sábio conceito, que sumariamente nos lembra que a liberdade individual termina onde começa a liberdade de terceiros.
Decidam em consciência!