Wednesday, October 11, 2006

Os "bárbaros" salvaram a Europa

No blogue da Atlantico, Henrique Raposo fala de um livro, "A Queda de Roma e o Fim da Civilização", argumentando que "a queda de Roma foi violenta e marcou mesmo o fim da civilização [, que] só voltou 1000 anos depois ao sabor de um tipo romano que chocou o seu tempo cristão: Maquiavel".

Que a queda de Roma foi violenta não contesto (mas terá sido mais violenta que as lutas intestinas do Império Romano?), mas terá sido o "fim da civilização"?

Uma primeira observação - é curioso que entre os paises mais desenvolvidos da Europa estejam fortemente representados paises que não pertenceram ao Império: Noruega, Islândia, Alemanha, Dinamarca, Suécia, etc. Claro que julgar factos de há mais de mil anos com base no mundo actual é um prefeito anacronismo, mas já é um ponto para desconfiar quando se fala das "origens romanas" da "civilização ocidental".

Mas será que o que há de bom no mundo "ocidental", como o progresso técnológico ou a democracia parlamentar (sistema a que eu faço muitas críticas, mas que é preferivel a ditaduras ou monarquias absolutas) derivam de alguma herança romana? Muito discutivel.

Quanto à democracia, provavelmente deve muito mais às assembleias tribais germânicas que a qualquer herança "clássica" (apesar da raiz grega da palavra) - veja-se a origem dos regimes parlamentares mais antigos da Europa: na Suiça, o sistema parlamentar surgiu quase por evolução "natural" da "democracia de aldeia" dos povos germânicos; em Inglaterra, o parlamentarismo também terá tido forte influência do hábito dos primeiros reis saxões serem apenas primus inter pares, eleitos pela assembleia dos guerreiros (aliás, Montesquieu falava da "liberdade inglesa nascida nas florestas da Germânia"); as cortes que havia nos vários estados medievais (e que tiveram uma certa inflûencia mitológica nas primeiras revoluções liberais) também têm em parte origem longinqua na tradição "bárbara" da monarquia electiva (que se manteve mais tempo, exactamente, na Europa do Norte).

Fazendo uma terceira concessão à "civilização romana" (a segunda foi a expressão "primus inter pares" atrás usada, e a primeira é este post estar escrito numa lingua latina), a esse respeito, recomendo a leitura da "Germania", de Tacitus (aquele link é só uma "versão condensada"; a obra completa está aqui).

Quanto ao progresso técnico, cientifico, cultural, etc., Roma foi um verdadeira deserto, quer a comparemos com a Grécia antiga, quer mesmo com a Idade Média (aliás, há muito tempo que estou para fazer um post "Roma - A verdadeira Idade das Trevas"; pode ser que eu algum dia o faça).

É verdade que talvez não seja fácil explicar porquê, mas é um facto que a centralização politica costuma ir de mão dada com a estagnação cientifica e cultural (compare-se o dinamismo das cidades-estado da Grécia Antiga e do Renascimento Italiano com a inércia romana, estando a Europa medieval a meio caminho). Ora, ao destruirem o Império e substituirem-no por uma Europa de múltiplos reinos, principados e cidades (mais ou menos) autónomas, os bárbaros podem ter sido os verdadeiros fundadores da "civilização". Sem eles, talvez a Europa se tivesse tornado naquilo a que antigamente se chamava uma "monarquia asiática" (ou seja, um dominio feudal em tamanho gigante) e, hoje em dia, nem sequer teriamos o nível de vida da China, já que não teriamos um "mundo desenvolvido" para exportar (bem, neste ultimo ponto talvez esteja a exagerar - afinal, a "Europa Romana" poderia sempre exportar para os "território bárbaros" da Europa do Norte).

Um ultimo ponto: não precisamos de especular para ver como teria sido a evolução se Roma não tivesse caido - afinal, o Império Romano não foi todo destruido. O Imperio do Oriente (Bizancio) sobreviveu para aí mais mil anos, e a verdade é que os bizantinos fizeram muito pouco que se visse.

4 comments:

Anonymous said...

bem apanhado.

Anonymous said...

eu sempre gostei mais das tribos barbaras.
enquanto o cristianismo andava por aí com a sua filosofia deprimente, os barbaros tinham filosofias mais terra a terra.
por exemplo, para os vikings o paraiso era valhala, onde só iam os herois.

há aqui algo de especial. talvez como dizia o outro; uma "vontade de poder", não sei.

Anonymous said...

Para o autor, algarvio, deste blogue ;)

"FC - Mas há influências e influências.
RC - Claro. É difícil escapar à influência tão evidente dos romanos, por exemplo.
FP - Essa é uma referência obrigatória?
RC - Sim, apesar de não ser a única, recordo. A influência romana é considerada mais civilizada, para utilizar uma expressão tão grata aos historiadores especialistas em História da Alimentação, e um marco importante. Eu estou de acordo com esse ponto de vista. Não é possível conhecer as origens da gastronomia local sem recuar até essa época."

Conversas entre Francisco Piedade e Renato Costa registadas no livro Boca a Boca - Segredos da Gastronomia Algarvia.

Miguel Madeira said...

Provavelmente o clima algarvio adequa-se mais à agricultura e pecuária romanas do que visigodas, logo é natural que a nossa gastronomia também seja "romana"