Friday, March 31, 2006

A fama e a SIDA

Há muito que sou da opinião que o dinheiro é como a heroina: a partir do momento em que começamos a auferir um certo nível de rendimento, já não conseguimos passar sem ele.

Hoje ocorreu-me outra reflexão do mesmo género: a fama é como a SIDA (ou como qualquer outra doença sexualmente transmissível). Olhemos para aqueles "famosos" que aparecem nas capas de revistas ao pé das caixas registadoras dos supermercados - como é que eles se tornam "famosos"? Normalmente, a principio, há alguém que é famoso por mérito próprio (futebolista, jornalista, etc.); depois esse alguém "tem um caso" com outra pessoa - ao fim de algum tempo de relacionamento, essa "outra pessoa" passa a ser considerada também um "famoso"; mais tarde, a "outra pessoa" tem um caso com uma terceira pessoa - já passa também a "terceira pessoa" a ser um "famoso", e assim por diante...

Não que esta reflexão tenha alguma importãncia, mas enfim...

Wednesday, March 29, 2006

Um tiro no pé?

Vendo bem, se calhar o meu anterior post refuta-se a sim mesmo: afinal, até pode ser apontado como a prova de como muitos esquerdistas "vivem mentalmente nos anos 60" (mesmo, ou sobretudo, os que não os viveram fisicamente).

Tuesday, March 28, 2006

Parados no tempo?

Para Pedro Silva, da Armadilha para ursos conformistas, o "típico militante de esquerda" vive "mentalmente" nos anos 60; em aparente consonância, Sabine escreve "Embora admire muitos activistas da esquerda nos anos 60 do século XX, penso que é tempo de adoptar novas maneiras de pensar e (sobretudo) de agir".

Pois, eu acho que a esquerda actual tem muito pouco de espírito "anos 60", tanto nas formas de pensar como, talvez sobretudo, nas de agir: em larga medida, a esquerda não ficou presa nos anos 60 - regressou aos 50.

Nomeadamente, a esquerda de agora (comparada com a dos "60") regressou muito ao paradigma "estatista/legalista", de acreditar que a "ferramente principal" para mudar a sociedade é o Estado (e, pelo caminho, muita desistiu de tentar melhor a sociedade...)

Por exemplo, quando, em 1964, a Universidade da Califórnia proibiu actividades políticas por parte dos alunos (recorde-se que era a altura do Vietname, do movimento pelos direitos dos negros, etc.), o que é que estes fizeram? Desafiaram as proibições, foram suspensos, enfrentaram a repressão policial convocada pelas autoridades académicas, etc - o chamado "Free Speech Movement" (cujo um dos activistas - Jack Weinberg - inventou a famosa expressão: "não confiem em ninguém com mais de 30 anos"; ou seja, não confiem no que que escrevo). Hoje em dia, a primeira reacção de grande parte da esquerda a uma situação dessas provavelmente seria "precisamos de uma lei que obrigue as universidades a respeitar a liberdade de expressão", em vez de a tentarem conquistar pela sua própria luta.

E se olharmos para o conjunto dos "anos 60", seja nos EUA, na Holanda, em França (e, por maioria de razão, em Portugal), o que os caracterizou foi a tentativa de começar a criar já uma nova sociedade (desde os activistas dos direitos civis nos EUA que boicotavam as leis racistas no Sul até aos estudantes portugueses que organizavam "cursos livres" nas universidades, passando pelas mulheres da classe média que começaram a recusar ser donas-de-casa), em vez de ficar à espera que alguém criasse essa nova sociedade por decreto (como é óbvio, no caso português, isto era reforçado por o Estado vigente ser o "inimigo").

Um simbolo: nos anos 60, fazia-se a apologia do "amor livre" e criticava-se o casamento (um slogan feminista era "o casamento é prostituição permanente; a prostituição é casamento temporário"); agora, luta-se por alargar o direito ao casamento (eu até apoio essa reivindicação, mas não deixa de ser uma evolução significativa).

Mas, além dos métodos (acção directa vs. mudança "por decreto"), também o conteúdo das reivindicações mudou (nem que seja porque o mundo mudou): p.ex., nos anos 60, criticava-se a mentalidade do "homem da organização" e, pelo menos em certos sectores, fazia-se a apologia de uma vida sem trabalho fixo e regular (gênero dedicar-se à pintura e vender os quadros na rua); agora a principal reivindicação é a segurança no emprego (claro que isso é uma consequência da "hierarquia das necessidades": só nos começamos a preocupar com a auto-realização quando o sustento e a segurança estão realizados; quando deixam de estar, começamos é a querer segurança).

Aliás, o chavão preferido da esquerda actual, "neoliberalismo" (a direita usa mais chavões que nós: além desse clássico que é o "politicamente correcto", tem também o "relativismo", o "eduquês", etc.) vai completamente ao arrepio da tradição ideológica "anos 60": na época, o pensamento dominante entre a esquerda (ou, pelo menos, a mais radical) não era propriamente atacar o "capitalismo neo-liberal e desregulado"; era dizer que a economia capitalista só não entrava em colapso devido à intervenção estatal (que impediria as crises económicas) e que a economia mista (hoje defendida com unhas e dentes contra os "neo-liberais") não passava de um instrumento ao serviço da "burguesia".

Diga-se de passagem que essa conversa de "neo-liberalismo" muitas vezes não faz grande sentido: p.ex. há uns tempos, a revista do Bloco de Esquerda chamava ao Katrina "furacão neoliberal", devido aos projectos de reconstrução urbana que iriam expulsar os pobres da cidade. Ora, um megaprojecto de restruturação urbana promovido pelo governo federal é tudo menos "liberal" (com ou sem "neo"). E é discutível se existe realmente algum "neo-liberalismo": há fortes argumentos de que nem sequer Reagan ou Tatcher reduziram o "peso" global do Estado, apenas alteraram as formas de intervenção e os seus destinatários (ou seja, se calhar, os autores dos anos 60 tinham razão e o capitalismo precisa da intervenção estatal para não "estoirar").

Finalmente, o que eu quero dizer com "a esquerda regressou aos anos 50"? Vou explicar: a esquerda dos anos 60 surgiu em larga medida da rejeição dos modelos das esquerdas anteriores - o "socialismo real" no Leste e o "Estado Social" no Ocidente. O argumento era que esses modelos até podiam ter elevado o nível de vida material dos trabalhadores, mas não tinham resolvido o que para eles era o problema principal: os trabalhadores estarem remetidos ao papel de meros executantes dos projectos concebidos por outros (no Ocidente, porque o poder no processo de produção continuava nas mãos dos capitalistas; no Leste porque os capitalistas haviam sido substituidos pelos burocratas estatais).

Assim, a "nova esquerda" dos anos 60 procurou criar um "novo socialismo", assente na "democracia participativa", no "controle operário", na "autogestão", na "acção autónoma das massas", no "poder popular de base", etc. (na verdade, essas ideias não eram tão novas quanto isso: é basicamente o que os anarquistas defendiam desde o século XIX e os comunistas "dissidentes" desde os anos 20). É verdade que alguma dessa esquerda apoiou regimes (como Cuba ou China) que não tinham nada disso, mas, há época, havia uma visão muito confusa desses regimes (tudo o que parecesse diferente da URSS bastava para pôr muita gente de cabeça à roda - p.ex., como Mao mobilizou os estudantes para atacarem os seus opositores dentro do PC, criou-se logo o mito de "Mao está ao lado das massas contra os burocratas"); além disso, muitas facções, como os anarquistas, a Internacional Situacionista, os trotskistas, etc., não cairam nesses disparates (em rigor, quase me arriscaria a dizer que o maoismo só terá começado a ser importante nos anos 70).

Além disso, como já não era uma questão de distribuir a "riqueza" mas sim o poder, a luta de classes foi alargada da luta pobres/ricos para a luta mais ampla dominados/dominadores: passou-se a considerar que, junto ao conflito trabalhador vs. patrão (ou trabalhador vs. gestor estatal), tinhamos também os conflitos entre jovens e adultos (nomeadamente os conflitos filhos-pais e alunos-professores), entre mulheres e homens, das minorias étnicas e sexuais face aos grupos maioritários, etc, e assim nasceram as famosas "causas fracturantes".

Ora, o que a esquerda dos nossos dias faz não é defender o "controle operário" ou a "democracia participativa" (na verdade, hoje em dia, às vezes encontramos mais conversa parecida com essa da boca de gurus da gestão empresarial), é defender o que resta do Estado Social. Quanto as "causas fracturantes" foram em larga medida despojadas da sua componente anti-hierárquica e anti-autoridade.

Ou seja, a esquerda actual, tanto nos meios (intervenção governamental em vez de acção directa) como nos fins (defesa do Estado Social) o que fez foi regressar aos modelos anteriores aos anos 60 - ou seja, está a defender as ideias da esquerda dos anos 50 (a que criou o Estado Social).

Nota final: como qualquer pessoa que clique no meu perfil pode ver, toda esta minha conversa sobre os anos 60 se baseia em informação em segunda mão, já que nasci em 1973.

Saturday, March 25, 2006

Re: O alegado poder de mercado do empresário

No Blasfémias, João Miranda responde à minha opinião de que o despedimento sem justa causa põe o trabalhador sem defesa face ao poder do empregador.

João Miranda argumenta que o ("alegado") poder de mercado do empresário não passa do "poder da natureza" (será a natural escassez de recursos que dará "poder" aos empresários) e que tentar limitar por vias legais o "suposto poder do empregador" vai desincentivar a criação de empregos por parte dos empresários e, assim, reduzir as alternativas de emprego que os trabalhadores têm disponiveis.

Logo a tese de o "poder do empregador" não ser mais que o "poder da natureza" poderia ser contestada: vários pensadores, como Lysander Spooner, Benjamim Tucker ou Kevin Carson, defendem/defenderam a posição que a concentração da propriedade dos "meios de produção" nas mãos dos capitalistas só é possivel devido a estes beneficiarem de intervenção estatal a seu favor, e que um verdadeiro "mercado livre" conduziria "naturalmente" a uma sociedade de pequenos proprietários. Um produto típico desta forma de pensar é a "carta de solidariedade aos estudantes e trabalhadores franceses" dinamizada por um grupo de "libertarians" norte-americanos, argumentando que liberalizar os despedimentos enquanto se deixa de pé toda a intervenção estatal favorável às grandes empresas é uma "cruel joke". No entanto, eu tenho grandes dúvidas acerca da validade destas teses (acho que merecem mais atenção do que têm tido - p.ex., creio que Proudhon, o "mestre" de Tucker e Carson, nem sequer é ensinado nas cadeiras de História do Pensamento Económico - mais daí a subscrevê-las a 100% vai um grande salto...) pelo que não vou insistir neste ponto.

Após esta divagação (os meus leitores habituais já devem ter reparado neste hábito, não?), vamos ao que interessa: será que a proibição do despedimento sem justa causa é uma má maneira de combater a dependência dos trabalhadores face aos patrões?

É verdade que, quanto maior fôr o desemprego, menor será o "poder de mercado" do trabalhador face ao empregador (se tudo o resto fôr igual); e também é verdade que a
a proibição do despedimento sem justa causa faz o desemprego ser um pouco maior do que seria (se tudo o resto fôr igual). Logo, será que a proibição do despedimento sem justa causa, de uma forma preversa, não reduzirá o poder do trabalhador face ao patrão? A minha resposta: quase de certeza que não. Repare-se nos "(se tudo o resto for igual)" que introduzi: mesmo que passasse a haver um pouco mais de empregos devido à institucionalização do despedimento sem justa causa, esse efeito (em termos de consequências sobre o poder relativo trabalhador-patrão) seria, quase de certeza, mais que anulado pelo poder discricionário de despedir que o patrão passaria a ter.

Além disso, a relação entre o desemprego e o despedimento sem justa causa não é assim tão linear: afinal, os "30 gloriosos" anos (aproximadamente 1945-1975) de alto crescimento económico e baixo desemprego ocorreram, na Europa, num ambiente em que não havia despedimento sem justa causa (ao contrário dos não-gloriosos anos 30 da crise económica, em que a "flexibilidade laboral" imperava). Além disso, a ausência de despedimento sem justa causa não é uma excepcionalidade francesa (ou portuguesa): é uma caracteristica de grande parte dos paises europeus, muitos dos quais conseguem - apesar disso - ter um desemprego substancialmente menor que o francês. Poder-se-á argumentar que, mesmo sem "despedimento sem justa causa", esses outros paises podem ter legislações mais flexiveis (p.ex, um maior leque de "justas causas" aceitáveis para despedimento), mas há uma diferença qualitativa importante entre admitir ou não o despedimento sem justa causa (seja esta "justa causa" qual for): mesmo com um leque alargado de "justas causas", continuamos no dominio das regras previsíveis - o trabalhador sabe em que circunstancias pode ou não ser despedido; pelo contrário, com o despedimento sem justa causa, estamos no dominio do arbitrio puro e simples.

Wednesday, March 22, 2006

O CPE será bom para os jovens?

O principal argumento dos defensores do "contrato de primeiro emprego" que o governo francês tenta implementar é de que vai combater o desemprego dos jovens, já que os empregadores, sabendo que, se quiserem, podem despedi-los nos 2 anos seguintes, vão se sentir mais confiantes para contratarem jovens com menos de 26 anos (há alguns posts no Insurgente que explicam bem este raciocinio).

Eu até nem discordo desse ponto - realmente, o CPE tornará mais fácil um jovem arranjar emprego. Mas também tornará mais díficil um jovem arranjar um emprego "definitivo" (com "definitivo" não me refiro a um mítico "emprego para toda a vida", mas a um emprego que só possa terminar com "justa causa"). Imaginemos que, actualmente, haverá 60% de jovens com empregos "definitivos", 10% com empregos "precários" e 30% desempregados (estes números são imaginários - só os 30% de desempregados é que é real - mas isso não afecta o raciocinio). Mesmo na hipotese super-optimista de o CPE reduzir o desemprego juvenil a 0%, isso não implicaria necessariamente uma melhoria: na situação actual, um jovem teria 70% de hipoteses de arranjar emprego e 60% de hipoteses de arranjar um emprego definitivo; com o CPE, passaria a ter 100% de hipoteses de arranjar emprego, mas 0% de hipoteses de arranjar emprego "definitivo" - quem é que nos garante que um jovem francês não preferirá ter mais dificuldade em arranjar emprego, em troca de maior segurança quando finalmente o alcançar? Na verdade, a reacção que se está a ver parece indicar que preferem (embora é verdade que, só por si, manifestações podem não ser representativas - mas as sondagens também indicam grande oposição ao CPE).

Além disso, a única coisa que podemos saber é que o CPE vai reduzir o desemprego - mas não sabemos em quanto o vai reduzir (pelo menos não vi referências a nenhum estudo fazendo projecções quantitativas): se o desemprego se reduzir de 30% para 29%, dificilmente compensará os sacrificios em segurança no emprego.

Assim, não podemos dizer que o CPE é benéfico para os jovens, e por duas razões:

Em primeiro lugar, não sabemos exactamente (de forma quantificável) qual o beneficio que vai trazer (embora admito que possam ser feitos estudos nesse sentido).

E, mais importante, mesmo que saibamos (ou tenhamos um ideia aproximada) de quais são esses beneficios, não sabemos se os jovens franceses (ou a maioria deles) preferirão o "beneficio" de mais facilidade em obter emprego face ao "sacrificio" de menos estabilidade. Eles parecem estar maioritariamente a dizer que "não".

Claro que há outros argumentos (tanto filosóficos como pragmáticos) que podem ser aduzidos em defesa do CPE - o único argumento que este post pretende refutar é mesmo o de que "é melhor para os interesses dos jovens".

Tuesday, March 21, 2006

Quando é que a violência é aceitável?(I)

O agitador pergunta "quando é que é legitimo (...) o uso da violencia por parte da população?".

A mim, acho que depende muito do próprio regime politico em que se viva: por mais crítico que eu seja da "democracia representativa", não a podemos pôr no mesmo plano que um regime ditatorial (embora às vezes a linha que separa uma "democracia representativa" de uma ditadura aberta seja díficil de traçar - veja-se, p.ex., a Rússia de Putin).

Num regime ditatorial, a violência da população contra o Estado é sempre legítima - pode não ser apropriada em certas situações, mas apenas por uma questão de eficácia, não por qualquer impedimento moral a priori (p.ex., a resistência pacifica dos checos à invasão soviética em 1968 deu melhores resultados que a luta armada dos hungaros em 1956).

Numa "democracia representativa", penso que a violência só é aceitável em auto-defesa face a actos violentos do próprio Estado - à partida, em caso de conflitos "Estado versus Povo" a melhor linha é a da desobediencia civil não-violenta, à maneira de Thoreau ou Gandhi. No entanto, se o Estado usar a sua violência contra os cidadãos, proclamar o estado de emergência, etc., então o recurso à contra-violência pode ser aceitável (ainda que seja díficil traçar o ponto em que é legitimo responder com violência à violência do Estado).

Nota - no caso de situações coloniais, países sob ocupação estrangeira, etc. aplica-se a regra para ditaduras, independentemente da natureza do regime ocupante (p.ex., os indianos tinham o direito moral de se terem lançada na luta armada contra os ingleses, embora tenham perferido não o fazer).

Monday, March 20, 2006

O "último ditador da Europa", como lhe chamam?


Talvez não.

Sunday, March 19, 2006

Maio de 68 e Estado Social

Hoje, no seu comentário na RTP1, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que os estudantes do Maio de 68 lutavam pela defesa e alargamento do Estado Social (fazendo aí um paralelo com as lutas actuais contra a precarização do emprego).

Bem, eu tinha cinco anos negativos aquando do Maio de 68, mas pelo que li e ouvi sobre o assunto, o que os estudantes e operários de 68 exigiam era a democracia directa e a autogestão, não o reforço do "Estado Social" - aliás, a direita e o PC até os chamavam de "anarquistas". A menos, claro, que tudo o que não seja "capitalismo puro e duro" seja "Estado Social".

Saturday, March 18, 2006

Ainda a respeito das ruas e parque públicos

Por vezes, quando se discute o valor relativo da liberdade e do bem-estar económico, ou se se é possível ser livre vivendo na pobreza, um argumento típico é que até pode ser melhor viver em liberdade, mesmo que "a dormir debaixo da ponte" do que sem liberdade. Mas isso só acontece porque há espaços públicos: se tudo fosse privado, quem não tivesse dinheiro nem debaixo da ponte poderia dormir - aliás, nem poderia dormir ou andar em lado nenhum, a menos que os donos autorizassem.

Re: A liberdade e o anarco-capitalismo

No Infernos, Berith escreve (via Esquerda Republicana):

"A liberdade no seu sentido mais verdadeiro, isto é, aquela que permite ao indivíduo fazer as suas escolhas num ambiente moderadamente neutro não se coaduna muito bem com os modelos de anarco-capitalismo que por vezes se defendem aqui, aqui, e aqui."

"Esquecem-se estes senhores e senhoras que a empresa é uma entidade que tem poder, poder esse que tal como o político tem que ser limitado, o facto de se destruir todos os mecanismos de controle (estatais) apenas significa que passa a existir uma potência de facto que não tem qualquer regulamentação"

Eu subscrevo quase tudo, mas creio que, dos blogs referidos, só a Causa Liberal (e 1/18 avos do Insurgente) poderão ser chamados "anarco-capitalistas". De resto, esses blogs (sobretudo o Insurgente) por vezes até me parecem defensores do "Estado forte" em matéria de "lei e ordem" (pelo menos é a minha impressão, talvez esteja errado).

Aonde é que eu quero chegar com isso? A este ponto: será que o "ultra-liberalismo minarquista" (i.e., em que o Estado não faz nada excepto proteger os direitos de propriedade) não será pior que o "anarco-capitalismo"? Afinal, tanto num caso como noutro temos o poder quase absoluto do proprietário sob a sua propriedade - o Estado nada faz para limitar o poder, digamos, de uma empresa sobre os seus trabalhadores. A diferença é que, se os trabalhadores decidirem limitar o poder da empresa através da acção directa (o que se calhar até é uma forma mais eficiente de limitar os abusos do capital do que estar à espera de regulamentação), aí, o Estado minímo já pode intervir, lançando a policia de choque (ou, quem sabe, o exército) contra os trabalhadores. Pelo menos o anarco-capitalismo é mais imparcial: o Estado não intervém em nada e o patrão paga a policia de choque do seu bolso.

Além disso, os anarco-capitalistas, comparados com os outros liberais, às vezes têm o mérito de se aperceberem melhor de situações em que a propriedade capitalista se apoia no Estado, como a propriedade intelectual, dos latifundios semi-feudais, etc. (aliás, nos anos 60, alguns anarco-capitalistas, como Karl Hess, chegaram a ter percursos interessantes).

Por outro lado, é verdade que o "Estado mínimo" têm uma grande vantagem sobre o anarco-capitalismo: é que, se fôr um "Estado mínimo" democrático, em breve deixará de ser "mínimo" e talvez faça alguma legislação limitando o poder do capital. Além disso, por mais "mínimo" que seja, o "Estado mínimo" tem sempre ruas e praças públicas aonde podemos exercer as nossas liberdades de circulação e expressão sem estar à mercê da autorização de um proprietário.

Friday, March 17, 2006

A "Escola Livre" e a "Escola Democrática"

O João Miranda tem um novo esquema comparativo - as diferenças entre a "Escola Livre" e a "Escola Democrática" (imagino que sejam, respectivamente, pseudónimos para "escola privada" e "escola estatal tal como existe").

Este esquema cai no lugar-comum clássico de criticar a "escola pública" por "os programas, os métodos de ensino [serem] definidos pelo Ministério da Educação na capital", que " as preferências das minorias não estão representadas no sistema de ensino", etc.

Não sei como a escola funciona hoje em dia, mas a experiência que eu tive, tanto os 12 anos como aluno (e mais 4 que não contam, porque penso que o JM está a falar do ensino pré-universitário), como o ter sido professor em part-time durante 3 anos, e mais a minha mãe ter sido professora primária dão-me a ideia que essa conversa do "centralismo do Ministério da Educação" é um papão: a mim parece-me que cada escola, e até cada professor, faz o que quer - embora se calhar se algum professor do ensino público me estiver a ler provavelmente não concordará (note-se que, para mim, dizer "que cada escola e cada professor fazem o que querem" é mais um elogio do que uma critica).

É verdade que, no que diz respeito aos curriculos, são definidos centralmente, mas mesmo isso não é 100% assim: em certas disciplinas (como matemática e história), por vezes acontece o programa anual ser tão extenso que cada professor decide qual a matéria que vai dar e qual a matéria que não dá (claro que, em principio, vai deixar de dar a que não é necessária para perceber o que vem a seguir) - no meu caso, essa situação não se punha porque eu era professor no ensino nocturno por unidades capitalizáveis, em que a matéria que se dá em cada unidade está bem definida.

Mas, quanto aos métodos de ensino, parece-me que cada professor ensina a matéria como bem entende - às vezes havia situações em que mudavamos de professor a meio do ano e era uma diferença do dia para a noite.

Ah, e a respeito do "lag do feedback", as "reuniões de grupo" para escolher os livros que a escola vai adoptar são (ou eram) anuais, não de 4 em 4 anos.

Aliás, é verdade que os intelectuais liberais até me parecem defender a autonomia das escolas públicas face ao governo (pelo menos como um "mal menor" enquanto não as privatizam), mas, quando passamos do campo "pré-politico" (dos pensadores) para o "politico" propriamante dito a coisa é diferente: os maiores defensores do ensino privado custumam ser também os maiores defensores do controle governamental sobre o que permancer público - o PP foi o maior defensor do "livro único", é a direita que é a favor de "directores executivos" nomeados e contra a "gestão democrática das escolas"; nos EUA não é raro serem os Republicanos a defenderem uma maior envolvimento federal no sentido de definir "padrões de exigência" para as escolas públicas, etc.

Creio que maior problema do ensino público será, não de "centralismo", mas de "feudalismo" (i.e., "oligarquia descentralizada"): não de o poder estar concentrado nos míticos "burocratas do ME", mas de, em cada comunidade escolar (i.e., o conjunto de professores, alunos, encarregados de educação, etc. de cada escola) o poder talvez estar demasiado concentrado nos professores e não na comunidade no seu todo

"Quem mexeu no meu queijo?"

Alguns artigos acerca do uso, pelas empresas nos EUA, do livro "Quem mexeu no meu queijo?" como instrumento de "lavagem ao cérebro" aos empregados:

Spencer Johnson- Cowardly Weasel, de Kevin Carson
I got your cheese rigth here, de Jon Carrol
Kevin Carson Gets Down on Cheese, de Karen DeCoster
The Cheese Stands Aonde, de Laura Lemay

Thursday, March 16, 2006

Re: O Prec espanhol

No seu artigo no DN, "O Prec espanhol", Luciano Amaral afirma que os projectos politicos de Zapatero em Espanha, nomeadamente o seu apoio à autonomia da Catalunha, representam uma espécie de PREC espanhol, ou talvez de regresso à agitação dos anos 30, em ruptura com a "normalização democrática de 78".

Em primeiro lugar, há algo curioso com os "liberais-conservadores": quando se fala do federalismo europeu são "eurocépticos", defendendo que a Europa deve ser apenas uma área de comércio livre; quando se fala de politica norte-america, parecem ser defensores dos "direitos dos Estados" contra o governo federal; em assuntos municipais, defendem a autonomia fiscal dos múnicipios; mas, quando se fala das autonomias espanholas, tornam-se defensores do poder central contra as "comunidades autonómicas".

Embora os espanhois do ABC saibam muito melhor do que eu (que só lá fui duas vezes) qual o ambiente politico em Espanha, também duvido que a actual situação seja "muito diferente de 78 mas parecida com 36". Afinal, será que 78 era tão diferente de 36 como isso? Recorde-se que nessa altura oficiais de extrema-direita preparavam um golpe de estado (a Operação Galáxia); e, tendo como referência a série documental "A transição", parece-me que toda a gente em Espanha, nessa altura, receava um banho de sangue a qualquer momento.

Quanto a dizer que a "II República foi um regime afinal muito imperfeitamente democrático, em que a direita não podia ganhar eleições (quando as ganhou, logo foi impedida, por meios violentos, de assumir o poder)", não sei aonde Luciano Amaral se baseia - a direita espanhola ganhou as eleições de 1933 e governou, liderada por Alejandro Lerroux, até 1936 (o "bienio negro"). É verdade que houve um revolta dos mineiros das Astúrias contra o governo, mas essa revolta não o impediu de exercer o poder - foi rapidamente esmagada pela "Legião Estrangeira" (comandada por um tal de Francisco Franco), que, nos meses seguintes, levou a cabo centenas de execuções extra-judiciais. Se o governo conservador caiu, não foi por "meios violentos", mas porque, ao fim de dois anos de governo, os escandalos de corrupção em que se envolveu levaram à ruptura da coligação e à realização de novas eleições.

Já agora, diga-se que a vitória da direita em 1933 provavelmente só foi possível porque os anarquistas se abstiveram, em vez de, como era usual, darem um apoio implicito aos partidos de esquerda (o massacre de Casas Viejas em que o governo republicano de esquerda reprimiu uma revolta camponesa mandando incendiar as casas aonde os rebeldes se haviam refugiado levou os anarquistas a retirarem o seu apoio tácito à esquerda institucional). Ou seja, se somarmos os espanhóis que eram contra o governo de direita com os que eram contra qualquer governo, Lerroux estaria provavelmente em minoria na sociedade espanhola. Além disso, o sistema eleitoral em vigor beneficiou a direita (o Partido Republicano Radical, de centro-direita, elegeu 104 deputados com 700.000 votos, enquanto o PSOE, com 1.700.000 votos, apenas elegeu 60).

Pelos vistos, se alguém "não podia ganhar eleições" e "quando ganhou, foi impedida de governar por meios violentos", foi a Frente Popular, que ganhou as eleições em Fevereiro de 1936 e em Julho sofreu o golpe militar que daria origem à Guerra Civil.

Notas ao meu post anterior

Há primeira vista, o meu exemplo pode ser facilmente atacado

Possivel contra-argumento 1: Gibraltar não é um país, é um território.

Possivel contra-argumento 2: o latifundio no Sul ibérico não nasceu do mercado - tem a sua origem remota na distribuição de terras após a reconquista (e mesmo que os actuais proprietários os tenham adquirido no mercado, isso não elimina o "pecado original")

Refutação dos contra-argumentos hipotéticos:

Em primeiro lugar, o que interessa é o principio abstrato: há, seguramente, mais liberdade de escolha num mundo composto por Estados democráticos medindo, em média, sete quilometros quadrados do que num mercado dominado por propriedades medindo, digamos, 800 hectares (8 km2).

Em segundo, a diferença entre país e território não é muito relevante para a questão (nem que seja porque os territórios britãnicos são quase países independentes).

Em terceiro lugar, é raro ver os defensores do mercado considerarem ilegitimas a distribuições de propriedade derivadas (directa ou indirectamente) de passadas intervenções do Estado: afinal, não se viu muitos liberais a defenderem a reforma agrária no Alentejo, logo é sinal que consideram os latifundios como parte do mercado (uma curiosa exepção é este artigo [pdf, pp. 6-8] do Libertarian Forum, elogiando a reforma agrária do PS).

Poder-se-á perguntar porque é que eu estou a responder a criticas imaginárias que ninguém fez: sinceramente, porque gostei tanto das minhas contra-criticas imaginárias que decidi imortalizá-las em post.

Wednesday, March 15, 2006

Democracia e Mercado

No Blasfémias, João Miranda apresenta uma comparação do "Processo democrático vs. mercado" (via Blue Longe). Eu era para escrever (e, realmente, estou a escrever) um post de resposta (nomeadamente porque acho quea democracia não requer altruismo), mas o comentador Alfredo fez uma critica muito melhor do que eu faria (aliás, houve outro comentador que escreveu: "É realmente um bom topico. Não pelo post inicial do diletante JM mas sim pelos comentários do Alfredo").

Mas, mesmo assim, vou acrescentar mais uma critica: é verdade que é mais dificil escapar à autoridade do governo no Estado do que à autoridade patronal no local de trabalho (já que é muito mais fácil mudar de emprego, ou ir trabalhar por conta própria, do que mudar de país); mas, por outro lado, a autoridade patronal, muitas vezes, é muito mais controladora do que a autoridade dos governos democráticos: as democracias não costuma impôr "dress codes" aos seus cidadãos, nem fazer leis proibindo-os de fumar mesmo quando estejam num pais estrangeiro (e há empresas que proibem os seus empregados de fumar mesmo quando não estão em serviço).

E mesmo o ser mais fácil mudar de país do que de local de trabalho não é necessariamente uma regra universal: afinal, pode haver empresas maiores que paises. P.ex., de certeza que há propriedades rurais no sul de Espanha maiores do que Gibraltar.

Já que falei no "unschooling"...

Como é meu hábito, tenho andado a folhear o livro Freakonomics na livraria e no hipermercado ao pé da minha casa (pode ser que um dia destes o compre).

Num dos capítulos, fazem referência a um estudo que foi feito, no EUA, comparando certas variáveis familiares (rendimento dos pais, familia "estruturada" ou não, etc.) com os resultados dos filhos nos testes escolares. Uma das conclusões desse estudo era de que os pais terem muitos livros em casa tinha uma correleção forte com os bons resultados nos testes, mas que os pais costumarem ler em voz alta aos filhos não tinha influência.

Os autores até apontam isso como um indicio de que os bons resultados terão causas genéticas (ter muitos livros seria um sintoma de pertencer a um meio socio-cultural elevado, o que por sua vez seria indicativo de um alto QI genético, que seria transmitido aos filhos, explicando assim os bons resultados). No entanto, eu venho propôr uma explicação alternativa: aprende-se melhor quando estudamos os assuntos que nos interessam e quando nos interessam. Assim, as crianças que têm muitos livros em casa têm uma maior possibilidade (e, portanto, probabilidade) de se porem a aprender coisas por sua iniciativa e por gosto pessoal, o que contribuirá para se terem um melhor desempenho escolar (e mesmo que os testes não tenham directamente a ver com os assuntos que eles auto-aprendem, há sempre efeitos indirectos: p.ex., alguém que saiba alguma coisa sobre os piratas das Caraíbas - o Morgan, o Barba-Roxa e essa malta - terá logo uma maior facilidade em aprender a história das guerras entre as potências europeias da época).

Tuesday, March 14, 2006

O "unschooling"

Um artigo sobre o "unschooling", uma derivação do movimento norte-americano do homeschooling:

Unschooling’ lets children pursue their own interests

"The Browns are part of an approach to education that is called "unschooling" and allows children to pursue what interests them, rather than trying to make them interested in things that interest others."

"The concept holds that learning is best done when a child's interests are engaged, and for a family with the talents and the resources to allow this to happen, great success is possible."

(...)

"As young children they were curious, imaginative and full of spunk. Learning was natural and fun," she said. "After being in school for a few years I saw their natural curiosity, imagination and love for learning being crushed by rules and conditioning. Learning became a task."

Já agora, uma nota curiosa sobre o homescholing: embora (nos EUA) haja tendência para o considerar como um movimento "conservador" (e até "fundamentalista"), teve bastante influência de sectores "progressistas" na sua origem e dinamização (por exemplo, na série televisiva "Dharma e Greg", a Dharma - a "radical" filha de hippies - é uma homeschooled)

Monday, March 13, 2006

A questão da propriedade intelectual

Acerca da polémica entre o CMF e o agitador acerca da propriedade intelectual, há varios argumentos que podem ser usados, quer para a defender, quer para a atacar.

Um poderoso argumento a favor da "propriedade intelectual" parece-me mesmo o de que os artistas/intelectuais/cientistas/inventores, etc. precisam de viver, e, para isso, precisam de poder obter um rendimento com a sua actividade. No entanto, há várias criticas que podem ser feitas este argumento:

  • Em primeiro lugar, é um argumento que perde grande parte da sua importancia se a discussão não for se deve haver PI, mas sim se este deve durar 10 ou 80 anos (direitos de propriedade intelectual com vida curta são suficientes para assegurar um rendimento ao autor - e, sobretudo, direitos que se mantêm décadas após a morte são dificilmente justificáveis), ou se a PI deve restringir todas as formas de uso ou apenas algumas (p.ex., algumas licenças Creative Commons continuam a dar aos criadores alguma propriedade sob a sua "criação", mas menos que a PI tradicional: há licenças que autorizam o uso livro em "paises em desenvolvimento", ou se for para fins não-comerciais, etc.);
  • Muito antes de haver "copyrights" e similares (por exemplo, no Renascimento), os artistas/cientistas/inventores/etc. sobreviviam. Mesmo sem PI, um escritor pode, por exemplo, fazer um contrato com um editor em que este lhe pague para editar o seu livro, ou um dramaturgo pode ser pago por um teatro para escrever peças. Claro que, em principio, o pagamento será menor do que se houvesse "direitos de autor", já que o editor (ou o teatro) está apenas a pagar o privilégio de ser o primeiro a publicar o livro (representar a peça), não o único (já que, a partir do momento em que o livro é publicado - ou a peça representada - outros podem copiar).
  • Os criadores podem obter os seus rendimentos de actividades derivadas: p.ex. um programador informático pode ganhar dinheiro dando assistência técnica aos utilizadores dos seus programas (refira-se, aliás, que a inexistência de PI não obriga os criadores a cederem as suas obras de graça: um programador pode cobrar pelas cópias do seus programas, não pode é impedir outras pessoas de também distribuirem cópias); isso é relevante no caso da ciência pura, já que, em larga medida, as descobertas/teorias cientificas não tem protecção directa a nível de PI - frequentemente, os "investigadores" acumulam a profissão com a de "professores".
Outro argumento (que, se calhar, vai dar no mesmo que o anterior) é de que a propriedade intelectual estimula os criadores (ao longo do post, vou usar esta palavra no sentido de "artistas/intelectuais/cientistas/inventores/etc") a "produzir", mas vejo dois contra-argumentos:

  • Se, por um lado, pode estimular a produção de obras de arte, invenções, etc., a PI também limita a sua divulgação, logo o seu benefício social global é ambiguo;
  • A "produção intelectual" de um individuo, muitos vezes, é a matéria-prima para a "produção intelectual" de outro: à primeira vista, parece que se Einstein tivesse direitos de propriedade sobre a "teoria da relatividade" teria tido mais incentivos para a desenvolver; mas, se os herdeiros de Maxwell tivessem direitos de propriedade sobre o conceito de campo electromagnético e os herdeiros de Newton ou Liebnitz sobre o cálculo diferencial, teria sido mais dificil para Einstein desenvolver a teoria de relatividade. Isto é relevante, p.ex. no software informático, em que o principal argumento dos defensores do Open Source e do Software Livre (sinceramente, ainda não percebi a diferença) é, exactamente, de que há mais progresso se os utilizadores poderem livremente alterar, desenvolver, re-combinar, etc. o software que utilizam.
Há mais alguns argumentos que podem ser usados contra a PI:

  • No caso de patentes industriais, há quem argumente que as patentes até podem reduzir o progresso técnico: uma empresa que detenha uma patente poderá "deixar-se estar" e usufruir dos lucros da patente; se não houver patentes, as empresas terão que estar constantemente a inovar para preservarem a sua vantagem competitiva (um exemplo, em PDF, deste teoria: Boldrine & Levin, Against Intellectual Monopolly, The Pharmaceutical Industry)
  • Pode-se também pegar na hipocrisia de empresas como a Disney, que são fortes defensoras da PI, ao mesmo tempo que grande parte das suas histórias, filmes, etc., se baseiam em histórias/lendas tradicionais do dominio público
  • É também discutível se há grande beneficio na aplicação mundial das patentes como é feita actualmente: p.ex., se os paises do Terceiro Mundo estivessem isentos de respeitar as patentes dos medicamentos contra a SIDA, será que as companhias farmacêuticas perderiam assim tanto dinheiro que desincentivasse o seu investimento em investigação?
Seja como fôr, independentemente dos argumentos a favor e contra a PI, uma coisa parece-me óbvia: nas situações em que a lei dos direitos de autor é alterada para alargar a protecção (p.ex., passar de 20 para 40 anos), não faz sentido que essa alteração tenha efeitos retroactivos, já que isso vai ter todos os incómodos que a existência de PI causa, sem o que é suposto ser o seu principal beneficio social, que é estimular a criatividade: não é por a protecção legal de obras realizadas no passado ser alargada que a produção dos criadores do passado vai ser estimulada (ainda não é possível viajar no tempo, nomeadamente para o passado).

Finalmente, gostaria de recomendar dois textos sobre o assunto (curiosamente, ambos são de liberais - no sentido europeu - ou seja, não é só entre os "esquerdistas anti-capitalistas" que há críticos da PI): "Patents are an Economic Absurdity", de François-Réne Rideau, e "Copy Catfight - How intellectual property laws stifle popular culture", de Jesse Walker.

Nota: poder-se-á criticar o eu, neste post, ter tratado as patentes e os direitos de autor por igual, mesmo em exemplos que dei. No entanto, creio que todas as defesas ou ataques que podem ser feitos a uns podem também ser feitos aos outros.

Thursday, March 09, 2006

Os gatos devem poder andar na rua?

No meu post sobre os gatos siameses, expressei a minha opinião que "a maneira «digna» de um gato levar a sua vida é dividi-la entre a casa dos seus «companheiros humanos» (...) e os telhados, quintais e jardins da vizinhança". No entanto, essa opinião é bastante contestável: por exemplo, a Prestwick-Beresford Old-Style Siamese Breed Preservation Society, no seu código de ética recomenda que os gatos castrados sejam mantidos estritamente dentro de casa; quando aos não-castrados, nem sequer "recomenda" - é mesmo uma imposição da associação que não andem na rua.

Há prós e contras para os gatos poderem andar na rua: o principal pró é que, se fecharmos um gato em casa, ele vai querer sair para a rua (em compensação, se o fecharmos na rua ele vai querer entrar em casa - o biólogo Desmond Morris captou bem essa atitude quando escreveu que a porta era o invento mais detestável para os gatos); de qualquer maneira, é sempre melhor ter um bairro ou quarteirão inteiro para passear, caçar, etc. do que apenas uma casa; e há muitos aspectos da "programação genética" do gato que funcionam melhor na vida ao ar livre (a sua habilidade para trepar e saltar, a proverbial curiosidade, etc.).

Quanto aos contras, temos os perigos associados: ele pode ferir-se (até gravemente) em lutas com outros gatos, ser atropelado, envenenado, etc. Além disso, um gato doente tem tendência a esconder-se, logo, se ele tiver acesso ao mundo exterior, pode ser quase impossível encontrá-lo para o levar ao veterinário. Finalmente, refira-se que enquanto durar a epidemia da gripe das aves faz todo o sentido manter os gatos fechados em casa.

Claro que hoje em dia esta questão é, em larga medida, apenas académica: os gatos domésticos só podem ter acesso ao mundo exterior se viverem numa casa com quintal ou varanda, o que é cada vez mais raro (aliás, nem sei se fora do Algarve há casas com varanda).

Para finalizar, um poema de Elizabeth Coatsworth, "Numa Noite de Neve", que ilustra bem este dilema:

Gata, se fores lá para fora caminharás sobre a neve,
Voltarás com pequenos sapatos brancos nas patas,
Pequenas pantufas brancas de neve com tacões de gelo.
Fica junto à lareira, minha gata. Deixa-te estar, não vás.
Vê como as chamas saltam e assobiam,
Ofercer-te-ei um prato de leite semelhante a uma margarida,
Tão branca e macia, tão esférica e doce -
Fica comigo, Gata. Lá fora o vento frio sopra.

Lá fora o vento frio sopra, Menina, e a noite está escura.
Há vozes estranhas gemendo nas árvores e cantando estranhas melodias,
E em vez de encontrares gatos furtivos, iluminados pela luz verde dos olhos
E com passos silenciosos onde a erva do prado permanece coberta de geada -
Menina, lá fora há presságios de magia e poder,
E de coisas ainda por acontecer. Abre a porta.

(tradução de Alberto Gomes, in Maravilhosos Gatos, compilado por Helen Exley)

Poemas felinos

Eu estava a pensar pôr um poema sobre gatos num post que vou escrever (sobre a problemática de qual é o melhor estilo de vida para um gato) mas agora estou na dúvida: é que isso já está muito visto (além de correr o risco de violar os direitos de autor dos herdeiros de Elizabeth Coatsworth, agora ainda posso ser acusado de violar alguma patente conceptual).

Monday, March 06, 2006

Esqueçam a minha "causa"

Bastou uma pequena pesquisa para descobrir que já há associações dedicadas a preservar o gato "siamês clássico".

Sunday, March 05, 2006

Vou arranjar também uma "micro-causa": a preservação do gato siamês clássico


Esta é a Kika. É verdade que não é uma gata siamesa pura, mas a sua bisavó (a Duquesa) era uma siamesa "pura" e era praticamente igual. E se olharmos para fotografias de gatos siameses de há umas décadas atrás eram assim.

Agora, olhemos para um gato siamês "moderno", p.ex. nestas fotografias da Cat Fanciers Association. Completamente diferente, não é?

Por alguma razão incompreensível, alguém meteu na cabeça que os gatos siameses deveriam ser daquela maneira e os criadores começaram a fazer cruzamentos selectivos para produzirem gatos com aquele formato.

Não que eu queira impedir alguém de criar gatos siameses com o formato que bem lhes entender (embora diga-se que alguns cruzamentos selectivos podem ser nocivos para a saúde do animal), mas, a menos que eu seja a única pessoa no mundo que prefere o gato siamês "clássico" ao "moderno", poderia-se "institucionalizar" a raça "gato siamês clássico" (p.ex., criando uma associação para esse efeito) e haver criadores que se dedicassem a criar gatos siameses com o aspecto "tradicional".

Claro que se poderá argumentar que todo o processo de criação e manuntenção de raças de gatos é reprovável, já que a maneira "digna" de um gato levar a sua vida é dividi-la entre a casa dos seus "companheiros humanos" (quem se diga "dono" de um gato não sabe o que está a dizer) e os telhados, quintais e jardins da vizinhança, o que implica que os gatos sejam "filhos de pai incógnito" e não haja lugar a criação propositada de raças (apenas a raças que surjam espontaneamente, como penso que seja o caso do "europeu de pelo curto" - vulgo "gato do telhado" -, do "bosques da Noruega", etc.). No entanto, como hoje em dia os gatos vivem em apartamentos (e o mundo dos "telhados, quintais e jardins" está em vias de extinção), creio que isso limita esse argumento contra a criação de raças de gatos: a partir do momento em que um gato já está confinado, não vejo grandes problemas em lhe fazer um "casamento arranjado".

Saturday, March 04, 2006

Estado, "estado de natureza", paz e guerra

O argumento clássico para justificar o Estado (e, sobretudo, o "Estado forte") é que sem uma autoridade suprema, acabaremos todos a matar-nos uns aos outros (a "vida miserável e brutal" de Hobbes).

Frequentemente, essa análise faz uma distinção entre a ordem interna (aonde o "monópolio da violência" por parte do Estado assegura a paz e a tranquilidade) e a ordem internacional, funcionando em "estado de natureza", que seria um "lugar perigoso", aonde os paises defendem implacavelmente os seus objectivos e o recurso à guerra é "business as usual".

Mas, se formos ver, a autoridade do Estado não é garantia de paz: o que mais é por esse mundo fora são guerras civis. Há quem argumente que as guerras civis são o resultado da ausência de um Estado com poder efectivo, mas isso é confundir causa e efeito: quando as guerras civis começam, normalmente há um "Estado com poder efectivo" - não é a sua ausencia que causa a guerra, mas sim a guerra que (raras vezes, diga-se de passagens) destrói o poder efectivo do Estado.

O site "Correlates of War" tem uma lista das guerras desde 1816 até 1997, divididas em três categorias: "inter-state", "intra-state" e "extra-state". As guerras "inter-state" são as clássicas guerras entre Estados, as "intra-states" as guerras civis e as "extras-states" as guerras de Estados contra grupos locais (p.ex., a guerra colonial portuguesa) - embora a fronteira entre as guerras "intra-state" e "extra-state" me pareça um bocado duvidosa. Seja como fôr, no periodo em questão temos 213 guerras "intra-state", 108 guerras "extra-state" e 79 guerras "inter-state", isto é, temos muito mais guerras "dentro de um estado" (213+108) do que guerras "entre estados" (79).

Poder-se-á argumentar que essa contagem é um bocado duvidosa: p.ex., vários golpes militares são contados como guerras "intra-state" (apesar de só durarem alguns dias), algumas guerras "extra-state" poderiam ser contadas como guerras "inter-state" (não é muito claro se nas guerras coloniais do século XIX tinhamos o "Estado contra rebeldes" ou dois "Estados" em confronto); além disso, a guerra colonial portuguesa é contada como 3 guerras "extra-state" (Angola, Guiné e Moçambique), enquanto a II Guerra Mundial conta como só uma guerra "inter-state".

No entanto, mesmo com essas ressalvas, parece-me que, em termos quantitativos, as guerras civis (ou de "libertação") são muito mais frequente do que as guerras internacionais.

Se irmos, não pelo número de guerras, mas pela contagem dos mortos, temos cerca de 32 milhões de mortos nas guerras internacionais (metade na II Guerra Mundial). Nas guerras internas é dificil fazer a conta, já que há muitas guerras em que não há dados acerca do total de mortos (é o que quer dizer o "-999" nalgumas colunas"); no entanto, se assumirmos que, nas guerras em que não é conhecido o total de mortos, não morreu mais ninguém além dos mortos do lado do "Governo" (hipotese altamente improvável), teriamos cerca de 21 milhões de mortos nas guerras "intra" e "extra-state"; se (mais provavél) admitirmos que os "rebeldes" tiveram o mesmo número de mortos que o "governo" (na verdade, nas guerras "extra-state" com valores conhecidos, não são raros os rácios de 10 rebeldes mortos por cada soldado - afinal, essas são as guerras tipicas de sabres contra metralhadoras), as guerras "internas" teriam tido cerca de 32 milhões de mortos.

De uma forma ou de outra, estes dados parecem desmentir a ideia de que o Estado é fundamental para manter a paz civil - parece haver, pelo menos , tanta (senão mais) guerra dentro de Estados como nas relações entre Estados (a tal "anarquia internacional").

Outro dado que reforça esta análise: pode ser só impressão minha, mas parece-me que desde o fim da Guerra Fria, que levou os EUA ao estatuto de super-potencia única tem havido muitos mais conflitos internacionais (sobretudo involvendo os EUA) do que antes. Ou seja, há medida que a "comunidade internacional" se vai tornando mais parecida com um "Estado" (já que há um país que se começa a desenhar como uma quase-autoridade máxima), a conflitualidade global aumenta, em vez de diminuir.

A minha explicação: nas relações entre Estados (ou, p.ex., entre clãs numa sociedade pré-estatal) ambas as partes podem perder algo (nomeadamente a sua soberania) se recorrerem à violência, logo tendem a pensar duas vezes antes de recorrerem a meios militares em vez de à diplomacia. Pelo contrária, na relação entre um governo (nomeadamente um governo autoritário e/ou colonial) e os seus súbditos (ou parte destes), ambos os lados têm menos a perder em recorrerem à violência: o Estado porque, em principio, ganha; os súbditos porque, estando já numa posição subordinada, têm menos a perder do que teria, digamos, um governo de um Estado rival.

Generalizando, concluo que quanto maior a diferença de poder entre duas facções rivais, maior o perigo de uma guerra: se ambos os lados tiverem a mesma força, pensam "é melhor tomar cuidado, que não sabemos o que uma guerra vai dar, e ainda ficamos pior do que estamos"; se haver uma parte muito forte e outra muito fraca, ambos os lados podem ter um incentivo à guerra: o lado forte porque o perigo de perder é pequeno; o lado fraco porque, de qualquer maneira, tem pouco a perder e muito a ganhar.

Corolários desta generalização:

- É mais natural haver guerras dentro de um Estado do que guerras entre Estados
- É mais natural haver guerras numa sociedade com Estado do que numa sociedade "anárquica" (o corolário anterior é um caso particular deste)
- É mais natural haver guerras entre Estados fortes e fracos do que entre Estados de força equivalente
- É mais natural haver guerras civis em ditaduras, colónias, etc. do que em democracias
- É mais natural haver guerras civis em paises com grandes diferenças ricos/pobres do que em países de classe média
- É mais natural haver um bom relacionamento entre pessoas em pé de igualdade do que numa hierarquia (os outros corolários são casos particulares deste).

Claro que a maior parte deste "corolários" são óbvios (sobretudo o 4º e o 5º) e quase toda a gente concordará com eles. O que eu queria mais marcar é mesmo os pontos 1º e 2º, que, esse sim, desafiam o que é considerado o "senso comum" (e também o ultimo ponto, que penso que muitas pessoas concordarão, mas também muitas dicordarão).

Hitler foi eleito democraticamente?

Nas discussões sobre as virtudes e defeitos das "democracias", há dois argumentos recorrentes: do lado dos "optimistas" diz-se que "nunca houve uma guerra entre duas democracias"; do lado dos "pessimistas", diz-se que "Hitler foi eleito democraticamente" (p.ex, num comentário de Bruno a este post da Causa Liberal). São dois pressupostas que já fazem parte da "verdade consensualmente aceite" mas... ambos estão errados!

A respeito da "paz democrática", pode ser refutada sem grande dificuldade. Quanto à teoria da "eleição democrática de Hitler" está ainda mais enraizada mas não é por isso que deixa de ser incorrecta.

É verdade que nas duas eleições realizadas em 1932, os Nazis foram o partido mais votado (37% em Junho e 33% em Novembro), mas tal estava longe de uma maioria parlamentar (e creio que facilmente encotraremos exemplos em Portugal de eleições em que o partido derrotado teve uma votação nesse nível - p.ex., o PS em 2002). E, em Junho de 1932, mesmo com a maior votação da sua história, os nazis não foram para o governo - logo, por definição, não "ganharam as eleições". E, se não as ganharam em Junho, então, por maioria de razão, também não as ganharam em Novembro, quando tiveram uma quebra monumental.

O que aconteceu foi que nenhuma maioria se conseguia formar, e os "governos de iniciativa presidencial" (como díriamos em Portugal) caiam em poucos meses. Então Hitler foi nomeado chanceler, num governo composto por nazis e pelos conservadores do Partido Nacional-Popular (mesmo esse governo estava longe da maioria parlamentar). Esta nomeação só ocorreu após grandes manobras de bastidores, em que o ex-chanceler Franz von Papen e alguns grandes empresários conveceram o Presidente Hidenburg a nomear Hitler. Entretanto, foram convocadas novas eleições para Março de 1933.

Embora os conservadores tivessem a maior parte dos ministros no governo nacional, Herman Goering era o Ministro do Interior do Governo regional da Prússia (controlava a policia) e deu "luz verde" para que as milicias nazis (as SA e as SS) impedissem os socias-democratas e os comunistas de fazer campanha. A 27 de Fevereiro, o parlamento foi incendiado. Na madrugada de 28, começaram as prisões em massa de opositores, e, ainda nesse dia o Presidente Hidenburg concedeu poderes a Hitler para suspender as liberdades civis "até posterior notificação".

A 5 de Março de 1933, finalmente, os nazis e os conservadores conseguem a maioria dos votos, mas Hitler já era "ditador" há, pelo menos, quase uma semana. No entanto, nem mesmo esta vitória (obtida num ambiente de prisões e violência arbitrárias) foi decisiva - a coligação de direita não obteve os 2/3 suficientes para alterar a constituição e impor uma "ditadura definitiva".

Para conseguir essa maioria qualificada, Hitler, alem de negociar o apoio dos católicos do Partido do Centro, suspendeu os deputados do Partido Comunista (que tinham sido presos logo após as eleições) e mandou prender vários deputados do SPD (suspender deputados e ordenar prisões extra-judiciais faziam parte dos poderes concedidos a Hitler pelo decreto de 28 de Fevereiro).

Realmente, houve montes de ditadores que chegaram ao poder ganhando eleições, desde Napoleão III Bonaparte a Alberto Fujimori, mas não me parece que Hitler seja um deles.

Curioso: só agora notei que amanhã é o aniversário das tais eleições "democráticas" que Hitler ganhou.

Wednesday, March 01, 2006

Acerca das notas a Matemática

(Post vagamento inspirado pelos quizzes do Tiago Mendes)

Em certos meios, é frequente dizer que a causa do suposto "descalabro" do sistema educativo será das "novas pedagogias" (e no ambiente social geral) que "desvalorizam o esforço, a memorização, etc.".

Ora, se é assim, como se explica que, nos exames, a maior "desgraça" seja a matemática? Não digo que a matemática não exija "esforço" nem "memorização" (aliás, nos seus artigos no Expresso, Nuno Crato, presidente da SPM, passa a vida a criticar as "novas pedagogias"), mas exige menos que a maior parte das outras disciplinas (em detrimento do "puro raciocinio abstracto"). Logo, se o mal estivesse na "perca de hábitos de esforço e memorização", a matemática até devia ser a menos afectada.

Uma achega final, para demonstrar a minha tese que a matemática é uma disciplina que requer, comparativamente, pouco "esforço/disciplina/etc.": na maior parte das disciplinas, as raparigas tem muito melhores notas que os rapazes, enquanto em matemática os resultados tendem a ser relativamente equilibrados. Ora, penso que ninguém contesta que, em média, as raparigas são muito mais aplicadas e têm hábitos de trabalho mais persistentes do que os rapazes (se tal é inato ou determinado por factores ambientais é outra questão).