Monday, February 20, 2006

"O vento levanta poeira"

Ainda a respeito das raízes culturais/civilizacionais da ciência, aproveito para citar algumas passagens do capitulo 18 ("O vento levanta poeira") do livro de Carl Sagan, "Um Mundo Infestado de Demónios" (um dia destes ainda sou preso por desrespeito a direitos de autor):

"Alan Cromer é um professor de física que (...) ficou surpreendido ao descobrir que tantos alunos eram incapazes de compreender os conceitos mais elementares. Na sua obra The Incommon Sense: the Heretical Nature of Science, Cromer sugere que a ciência é díficil por ser nova. Ele afirma que nós (...) só descobrimos o método cientifico há uns séculos (...)."

"Cromer sugere que, se não fosse uma série improvável de eventos históricos, nunca teriamos inventado a ciência"

(...)

"A civilização chinesa inventou os caracteres tipográficos móveis, a pólvora, a bússula magnética, o sismógrafo, (...) e as descrições do firmamento. Os matemáticos indianos inventaram o zero, a chave para a aritmética prática e, por conseguinte, a ciência quantitativa. A civilização asteca desenvolveu um calendário muito melhor que o da civilização europeia (...). Mas nenhuma destas civilizações, afirma Cromer, desenvolveu o método cientifico, investigador e exprimental. Tudo isto [para Cramer] veio da antiga Grécia:"

"«O desenvolvimento do pensamento objectivo por parte dos gregos parece ter exigido um certo número de factores culturais específicos. Em primeiro lugar, havia a assembleia, onde os homens começaram por aprender a persuadir-se uns aos outros por meio de um debate racional. Em segundo lugar, havia uma economia maritima que impedia o isolamento ou o provincianismo. Em terceiro lugar, havia um vasto mundo aonde o grego era falado que podia ser percorrido por viajantes e estudiosos; Em quarto lugar havia uma classe mercantil independente que podia contratar os seus próprios professores. Em quinto lugar, houva a Iliada e a Odisseia, obras -primas literárias que resumem o pensamento racional liberal. Em sexto ligar havia uma religião literária, não dominada poelos sacerdotes sacerdotes. E em sétimo lugar houve a permanencia destes factores durante 1000 anos. O facto de todos estes factores se terem reunido numa grande civilização é absolutamente fortuito e não se repetiu»"

"Estou de acordo com parte desta tese (...)"

"No entanto, julgo que existe uma forte prova em contrário (...), a chamar-nos de há muitos milénios..."

"O pequeno grupo de caçadores segue o trilho das marcas dos cascos e outras pistas. Param durante um momento junto a um renque de árvores. Acocorados, examina os indicios com mais atenção (...) Depressa se põem de acordo quanto aos animais que foram responsáveis, ao seu número, às idades e sexos, se há alguns feridos, à rapidez com que se deslocam, há quanto tempo passaram, (...) se o grupo conseguirá apanhar as presas e (...) quanto tempo levarão. (...) Apesar dos arcos e das flechas venenosas, continuam durante horas a um ritmo de maratona. Quase sempre decifram correctamente a mensagem no solo. Os gnus, antilopes ou ocapias estão onde pensavam e o seu número e estado correspondem ao que previram (...)"

"Esta descrição (...) tem a sua origem no povo !Kung San, do deserto do [Kalahari], n[o] Botswana e na Namibia (...). É possivel que os !Kung S sejam caracteristicos do modo de vida dos caçadores recolectores em que os seres humanos passaram a maior parte do tempo da sua existência (...) Eram tão hábeis a seguir trilhos que as suas proezas nesse dominio se tornaram lendárias e o exército sul-africano os recrutou para seguirem «presas humanas» (...)"

"Como conseguiam eles fazê-lo? Como eram capazes de dizer tanto a partir de um simples olhar? Afirmar que eram óptimos observadores não explica nada. Que faziam na realidade? Eis o que diz o antrópologo Richard Lee:"

"Eles examinavam a forma das depressões. As pegadas de um animal que se desloca rapidamente exibe uma simetria mail alongada. Um animal ligeiramente coxo protege a pata lesionada, assenta menos peso sobre ela e deixa uma pegada mais ténue. Um animal mais pesado deixa uma concavidade mais profunda e mais larga. Estas correlações estão na cabeça dos caçadores."

"Ao longo do dia, as pegadas vão-se tornando menos distintas. As paredes da depressão têm tendência a esboroar-se. A areia arrastada pelo vento acumula-se no fundo da concavidade. Talvez sejam soprados para dentro dela pedaços de folha, raminhos ou erva. Quanto mais se espera, maior é a erosão"

(...)

"Uma manada a galope detesta o calor do Sol. Os animais usarão toda a sombra que conseguirem encontrar. Alterarão a sua rota para aproveitarem a breve sombra de um renque de árvores. Mas o sítio aonde a sombra se encontra depende da hora do dia, pois o Sol desloca-se no céu (...) A partir das curvas que os trilhos descrevem é possível dizer há quanto tempo passaram os animais. Este cálculo será diferente em diferentes estações do ano (...)"

"Em minha opinião, todas estas formidáveis aptidões para seguir pistas são ciência em acção."

(...)

"Será isto realmente ciência? Cada caçador, durante o seu treino, ficará acocorado horas a acompanhar a lenta degradação de uma pegada de antilope? Quando o antropólogo faz esta pergunta, a resposta dada é que os caçadores sempre usaram estes métodos. Durante a sua aprendizagem, observaram os pais e outros caçadores experientes. Aprenderam por imitação. Os principios gerais foram passados de geração em geração. As variações locais - a velocidade do vento e a humidade do solo - são actualizados consoante as necessidades em cada geração, sazonalmente ou dia a dia."

"Mas os cientistas modernos fazem exactamente o mesmo. Cada vez que tentamos avaliar a idade de uma cratera na Lua (...) pelo seu grau de erosão, não realizamos o cálculo a partir do zero. Sacudimos a poeira de um certo artigo científico e lemos os números comprovados que foram postos no papel talvez por uma geração antes. Os físicos não deduzem a partir do zero as equações de Maxwell nem a mecãnica quântica. Tentam compreender os principios e a matemática, observam a sua utilidade, notam como a natureza segue essas leis e afeiçoam-se a estas ciências, fazendo-as suas."

"Porém, alguém teve de descobrir pela primeira vez toda esta técnica para seguir trilhos, talvez algum génio paleolitico ou, mais provavelmente, uma sucessão de génios em tempos e lugares muito distantes uns dos outros. Não existe nenhum vestigio de métodos mágicos na técnica de seguir trilhos dos !Kung - examinando as estrelas na noite anterior ou as entranhas de um animal, lançando dados ou interpretando sonhos (...). Eis uma pergunta especifica, bem definida: em que direcção seguiu a presa e quais as suas caracteristicas? É necessária uma resposta precisa que a magia e a adivinhação não fornecem - ou, pelo menos, não fornecem as vezes necessárias para matar a fome(...)."

"É quase certo que o pensamento cientifico nos acompanhou desde o início. Poemos vê-lo nos chimpanzés (...) quando preparam um junco para enfiar na termiteira a fim de extrair a modesta fonte de proteinas que necessitam."

(...)

"Para se conseguirem alimentos é preciso conhecer as propriedades de muitas plantas, que é indispensável saber distinguir umas das outras. Os botânicos e antropólogos descobriram, repetidas vezes que, por todo o mundo, povos caçadores-recolectores distiguiam as diversas espécies de plantas com a precisão de um taxonomista ocidental. Fizeram mapas mentais do seu território com a precisão de um cartógrafo. Mais uma vez, tudo isso é condição indispensável para a sobrevivência."

"Por conseguinte, é disparatada a afirmação de que (...) o desenvolvimento intelectual dos povos «primitivos» não lhes permite entender a ciência e a tecnologia. Este vestigio de racismo e colonialismo é desmentido pelas actividades quotidianas das pessoas que vivem sem domicio fixo e quase sem bens pessoais, os raros caçadores-recoletores que restam - os guardiões do nosso passado distante."

"Dos critérios de Cromer para o «pensamento objectivo» podemos (...) encontrar nos caçadores-recolectores um debate vigoroso e fundamental, a democracia directa participativa, viagens até paragens distantes, a ausencia de sacerdotes e a persistência destes factores, não durante 1000 anos, mas durante 300 000 ou mais. Segundo estes critérios, os caçadores-recolectores tinham necessariamente de ter ciência. Eu creio que a têm. Ou, antes, que a tinham."

(...)

"Não penso que a ciência seja díficil de ensinar por os homens não estarem preparados para ela, porque surgiu só por acaso, ou porque não temos a capacidade intelectual de a entender. Em vez disso, o enorme entusiasmo com a ciência que vejo em alunos que começam a estudá-la e a lição dos caçadores-recolectores que restam são eloquentes: uma propensão para a ciência está profundamente enraizada dentro de nós, em todas as épocas, lugares e culturas".

Diga-se que eu citar este texto não significa que concorde a 100%. P.ex., se considerássemos que "ciência" implica a procura do "conhecimento apenas pelo conhecimento" (como aprendi em Filosofia, no 10º ano), as técnicas dos caçadores-recolectores não seriam ciência (já que estavam viradas para a aplicação prática). A inexistência de sacerdotes entre os caçadores-recolectores também é duvidosa (haverá grande diferença entre um sacerdote e um xamã ou pajé?). Mas concordo a 98%, para aí.

Já agora, uma citação de T.H. Huxley (o primeiro Huxley famoso), logo no principio do capitulo: "Cada vez que um selvagem segue a presa que vai caçar faz uso de uma memória e de uma exactidão de raciocinio indutivo que, aplicadas a outros domínios, lhe garantiriam um certo renome como homem de ciência... A actividade intelectual de «um bom caçador ou guerreiro» ultrapassa consideravelmente a de um inglês vulgar" (Darwiniana: Essays).

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