Wednesday, January 04, 2006

Os impostos dos funcionários públicos

Lendo os blogs liberais, é frequente surgir o argumento que os funcionários públicos não pagam impostos: a ideia é que, como os funcionários públicos recebem mais do Estado do que pagam, têm um "saldo positivo" e, portanto, não pagam impostos (recebem). Assim, um funcionário público que que receba 2.500 euros iliquidos e que pague 500 euros de impostos, na verdade, não paga impostos nenhuns - ele recebe 2.000 euros livres de imposto.

Na minha opinião, isso é como dizer que um bancário não paga juros de empréstimos, já que os salários que recebe do banco, normalmente, são mais que os juros que eventualmente pague. E, já agora, que os pedreiros não pagam casas, que os funcionários dos supermercados fazem compras à borla, etc.

Eu até percebo a base para os liberais terem a mania de dizer isso: realmente, do outro lado, por vezes há quem diga "só os funcionários públicos é que pagam impostos", ou mesmo "para combater o deficit, é preciso aumentar os funcionários públicos, porque são quem paga impostos". Concordo que estes argumentos não fazem sentido, mas o argumento de que "os funcionários públicos não pagam impostos" é tão falacioso como esse. Vou tentar explicar por fases:

Imaginemos um empresa, que tanto pode vender a privados como ao Estado. Pelo que lí, os liberais concordam que, se a empresa tiver como cliente o Estado, é tal e qual os funcionários públicos (ou seja, não paga impostos). Suponhamos que a empresa vende computadores no valor de 1.000 euros, e que tem um lucro de 200 euros em cada um (o que significa que vai pagar 40 euros em IRC). De acordo com a lógica convencional, é simples: venda a quem vender, a empresa vende um computador por 1.000 euros, e, mais tarde, vai pagar 40 euros ao Estado (por cada um). Mas de acordo com a lógica deses liberais, não: se a empresa vender o computador ao Estado, não é assim - ela vende o computador por 960 euros e não paga impostos. Ora, dizer que a "empresa não paga impostos, cobra é os produtos mais baratos se vender ao Estado" vai dar ao mesmo que pagar impostos: ter que pagar 40 euros por vender um computador ou não pagar nada e fazer um desconto de 40 euros ao Estado é a mesma coisa. De uma maneira ou de outra, o Estado ganha 40 euros sempre que a empresa vende um computador.

Segundo exemplo: imaginemos um prédio, cujos moradores decidem contratar alguém para lavar as escadas. Acabam por contratar uma pessoa que mora no próprio prédio: vamos supor que lhe pagam 400 euros por mês e que cada apartamento (são 10) contribui com 40 euros. em termos financeiros, isto é tal qual o Estado, os contribuintes e os funcionários públicos, logo, a lógica dos tais liberais é que a pessoa que lava as escadas não paga o condominio - ou seja, em vez de contribuir com 40 euros (como morador) e receber 400 euros, na realidade, recebe apenas 360 euros. Mas, mesmo que seja assim, não vai dar ao mesmo: de uma forma ou de outra, ele está a "contribuir" para o condominio - de acordo com a abordagem convencional, pagando 40 euros; de acordo com a abordagem "liberal", cobrando menos 40 euros pelo serviço. Ou seja, está sempre "dando" 40 euros ao condominio.

Mais um exemplo: será que, quando um funcionário público compra um maço de tabaco, não paga imposto sobre o tabaco? Pela lógica liberal, não. Quando ele compra o maço, não está "a pagar imposto", está "a receber menos ordenado". mas, quer lhe chamemos "pagar imposto", quer "reduzir o ordenado", não é a mesma coisa? Ou seja, não está a ser penalizado financeiramente por comprar o maço de tabaco?

Aonde é que eu quero chegar com esta conversa toda?E é que mesmo que aceitássemos a teoria de que "os funcionários públicos não pagam impostos", eles seriam à mesma "contribuintes" - "contribuiriam" recebendo menos, em vez de "pagando". E, quer aceitemos a teoria que "os impostos são a contribuição do individuo para o bem comum" ou a teoria que "os impostos são um roubo organizado pelo Estado", de qualquer maneira, os funcionários públicos "contribuem" (ou são "roubados"), de uma forma ou de outra.

Assim, acho que é melhor chamar mesmo aos impostos que os funcionários públicos pagam "impostos" e não "reduções de ordenado" - vais dar ao mesmo e faz mais sentido. Voltando ao exemplo do fumador, o "ordenado" é o que ele recebe pelo seu trabalho, e o "imposto" é o que ele paga para fumar. Dizer que "ele não paga imposto, tem é menos ordenado" é misturar alhos com bugalhos.

2 comments:

Tiago Mendes said...

Muito bom... já nem me lembrava que tinha tido há tempos esta discussão, julgo que no Insurgente (ou Blasfémias? Certamente que com o João Miranda ao barulho). Louvo-te não só os argumentos mas a paciência...

Miguel Madeira said...

O que me inspirou a escrever este post foi uma tese que acho ainda mais absurda: a de que uma revista, por ser editada pelo sindicato dos funcionários públicos, era paga pelo erário público (já que o sindicato é pago por quotas dos fps, que por sua vez recebem um ordenado do Estado)

http://tautau.blogspot.com/2006/01/teorias-da-conspirao-pagas-pelo-errio_02.html

Nos comentários, o Karloos alterou um bocado o argumento, mas a ideia original era essa